Por que escrever sobre Chico Science? Minha atração por este tema veio talvez do fato de ver em Chico um domador da inveja recifense e construtor, aos trancos e barrancos, de uma obra conceitual, isto é, ele ambientou sua produção num só tema, o Manguebeat. Domesticou o instinto de certa forma destruidor da bela e perversa Recife.

O Manguebeat é um oásis de originalidade no meio da cultura brasileira que vomitava brega, pagode, música sertaneja e axé em ritmo alucinante, enlouquecedor e o povo pernambucano, que estava acostumado a importar seus ídolos e ter seus direitos desrespeitados na demência do cativeiro e domesticação, percebeu nas cores e luzes de Science e seu grupo, a metamorfose do horror em estranha beleza superficial, na sintonia do nosso desequilíbrio, o reflexo do desequilíbrio do mundo.

Fui tomado por um ímpeto e escrevi centenas de páginas sobre o Manguebeat , que se mostrou inesperadamente complexo na sua proposta de misturar rock, folclore, contracultura, cibernética e tantas outras coisas num caldeirão que pouco a pouco se delineava na composição do meu quadro . O povo preenchia seu vazio, enfeitando-se para animar os outros prisioneiros do sistema e nesta gaiola chamada injustiça social que é o Brasil, o poeta- caranguejo propôs comicamente e com um riso e posturas que lhe eram peculiares, a invenção do brasileiro que, mesmo abandonado à sua própria sorte nos anos 80 e 90 (como sempre), reagiu, transformando desgraça em diversão musical onde a linguagem num vai- e - volta exibia uma fala dura e vulgar que não temia o ridículo e se tornava extasiante, ritualística e convidava a tripudiar sobre as instituições como numa história em quadrinhos, numa travessura adorável que intuitivamente louvava a liberdade em todas as suas formas de satisfação , mantendo-se longe da religiosidade medieval que mascara nossa realidade grotesca de cidadãos sem direito a nada. O malungo manteve a clareza mental intacta no meio do turbilhão pernambucano e navegou no caudaloso rio que é nossa histórica cultura e não se deixou abater pelas atrocidades externas, sabendo reconhecer os demônios castradores, eliminando- os , combatendo-os como um vingador caboclo psicodélico que veio do povo, que atravessou o limite do caos do Recife e sintonizou-se, dobrando a crueldade com sua lança . Um contador de histórias que tratava o tempo como um brinquedo e tentou expressar sua mensagem através de uma linguagem corporal, de expressões faciais e versos bem dinâmicos, magnetizando . Tornou-se mito: ídolo pop, estrela, mestre, por pura astúcia e foi coroado de louros pelo povo.

Tudo isso gerou em mim a fome de entendê-lo, de oferecer uma visão dentre as várias possíveis para uma leitura desta lenda chamada Chico Science.

Moisés Neto



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