"Rádio S.AMB.A."( Serviço Ambulante da Afrociberdelia)

A primeira coisa que devemos observar neste quarto CD do grupo pernambucano Nação Zumbi é o uso de codinomes . Difícil saber quem é quem, mas não deixa de ser um recurso interessante que nos remete aos poetas árcades brasileiros. A seguir , manuseando a capa e o encarte já percebemos o uso de apenas três cores: Azul, vermelho , preto sobre o branco e desenhos simples com a tecnologia como tema: Alto- falantes, homens- rádios. A duração da primeira música , "Do Mote do Doutor Charles Zambohead / Azougue", pode torná-la inviável para tocar nas FMs (06:25 m:s), mas o NZ não depende delas. Charles Zambohead é Chico Science(1966-1997) e o batuque dos tambores é ritualístico. Azougue é a bebida sagrada dos caboclos do maracatu . A letra é um devaneio. Um grito de liberdade que mistura matéria e espírito: "Perto daquele vento assim passo o tempo/ (...) volto no tempo se quiser(...) caminhando alto". Pressentimos aqui os caminhos psicodélicos. Os meninos abrem os trabalhos transmitindo o mote do malungo que se foi em 97 . mas que nesse mundo continua aceso, neste grande subúrbio afastado do centro: "Olhando tudo de novo/ O grande quilombo tropical/ Calções, mantos , camisas de cetim/(...) meias compridas/ Guarda peito enfeitado com espelhos/ cores no chapéu/ alfaias enfeitadas com areia brilhante - Com esse enfeite se pode até / Entrar no céu". Mas os meninos não se iludem, nem fazem mal "Mesmo com todo esse carnaval". É um chamado. O vigor impulsionado por uma percussão arrojada, guitarras rasgando o ar clamam poder para o povo. Jorge do Peixe defende o interesse e as possibilidades das rádios comunitárias que são massacradas pela "máfia da mídia". As mensagens das Rádio S.Amb.A. envolvem os habitantes do planeta Mangue, onde seres vivem a transcendência na maior curtição . A folia instalada pelo CSNZ , Mundo Livre, Mabuse, Renato Lins, Hélder, Hilton Lacerda e tantos outros espraia- se no experimentalismo, na ousadia, no atrevimento. Atrever- se é proibido. Recife foi revolucionário mas está , como todo o Brasil (e o mundo? Pós- moderno?) buscando o convencional. Algo que rompa o conformismo é tido como coisa de doido.

Manguebeat ou não, a Cena Recifense desce até os Textículos da Mary (grupo mangue que aborda o homossexualismo em letras e atitudes ) e tenta endurecer Via Sat( grupo que não quer de modo algum ser vinculado ao Manguebeat). A vida é doce.

Rádio S.AMB. A . é um "cartucho de resistência" , assim expressa- se o NZ , que rompeu com a multinacional Sony depois do disco póstumo, ainda com Chico - o "CSNZ" de 98, dispensou a Warner e assinou com a Y- Brazil?. O NZ é auto- empresariado, diga-se de passagem.

O CD traz as participações do grupo norte - americano Tortoise , também do Planet Hemp, Fred Zero Quatro, Lia de Itamaracá e dos pioneiros do Hip Hop - o grupo Afrika Bambaataa, na faixa "Zulu x Zumbi" : " E no meio deste tiroteio / Vou mostrar ao que o maracatu veio / Carregando o som na cabeça sem usar uma rodia / Olhando , como sempre, pra tudo".

Rádio S.Amb. A . é "samba sem pandeiro. A valorização do samba é positiva porque ninguém está sendo purista. É um modo de mostrar que samba não é só carioca. O samba nunca foi carioca. É tão carioca quanto o baião é de Luiz Gonzaga , não tem dono", detonaram Jorge du Peixe, Pupilo e Lúcio Maia. "Fico sempre acordado na sambada inteira/ Com os olhos vidrados e ouvidos colados no som(...) pra desvendar o samba/ Maluvido ou não // Mandaram arrancar as tripas do samba(...) então peguei- lhe pela beca/ No meio da graça/ Abri- lhe o bucho/ E arranquei- lhe as tripas/ Só pra ver que som dava/ Se era de bamba" (Em "Arrancando as Tripas"). Observe as sampleadas do Kraftwerk e em "Jornal da Morte", onde o NZ recria a batida do samba.

O uso uso de termos populares, herança modernista de primeira hora , a temática alucinante , o ritmo sacolejado do grupo, percorrem o CD do início ao fim. Em "João Galafuz", Lia de Itamaracá reforça o clima. " Eu já me disse uma vez: Minha jangada vai voar(...) Eu vou morar depois do mar/ Deixo a saudade para vocês (...) um banho de consciência se afogar de uma vez/ De cor e cheiro as águas mudarão/ Eu sei/ Mas eu estava longe demais".

O velho ideal psicodélico, a batida africana, somada à moderna tecnologia de ponta, transformam este petardo em pastilha referencial da universalização da proposta recifense que se apóia no Manguebeat, porém a palavra "caranguejo", recorrente nos outros três CDs, aqui só aparece na faixa "Caranguejo na Praia das Virtudes - Madame Satã" (que, junto com "Carimbó", já havia sido lançada em outra versão pela revista Trip em 1999):" A lâmina corria/ A vista escurecia/ E a multidão nem via/ Se espremia / Toda a cidade (...) Os ecos sentavam ao lado dos barracões / E as donas reverberando, virando os olhos/ Com opiniões". O que vemos é uma construção poética meio dadaísta que sugere um contraponto entre o éter e a carne , um recurso que se intensifica em "Lo-Fi Dream" , a terceira música do disco: "Levei pernada / De um morto- vivo / Embaixo de um arvoredo/ Em cima de um limo/ Eu tava sem assunto". A recorrência ao idioma inglês permeia esta música:" My room is so high now/ Like a nigthmare (...)são colagens de imagens vivas / Estou dançando enquanto sonhando/ Cheguei numa esquina toda colorida(...) Do the androids dream with electric tropics?". Vemos aqui uma alusão ao título do romance que deu origem ao cult movie "Blade Runner- O Caçador de Andróides", ícone da vanguarda cinematográfica dos anos 80.

Na quinta música do CD , "Pela Orla dos Velhos Tempos" , encontramos um eu- poético que reclama "Foi não foi tô esquecido/ No frigir já fui passado/ Sem imagem e sem som/ Vira e mexe tô batido/ Bebe, liso e abusado/ Já me davam por vencido(...) segurei o juízo/Levantei toda a vista/ Olhei reto na vida(...) Bandeei pro inusitado Pra ver se driblava o acaso", nesta letra vemos a participação de Fred Zero Quatro numa construção que nos remete à geração pé- na - estrada (Beat Generation) . São excluídos num sistema corrupto em busca de um significado. São guerreiros a caminho de uma trincheira na guerra entre passado presente e futuro.

Em "Remédios" , sexta música , lemos na letra de Toca Ogan: "Tava sentado na pedra fria/ O rei dos índios mandou chamar/ Caboco índio africano/ Caboco índio Tupinambá/ Com sua flecha vamo atirar/ Caboco Maia/Tupã / Ketua caboco/ Ketua/Toca tambor caboco/Toca tambor" . As raízes do som do Nação Zumbi, já se sabe está na música dos rituais africanos, a letra faz alusão a esses misteriosos rituais.

Em "O Carimbó" , está: "Tu chegou pra marcar/ Tu chegou pra cantar/ Tu chegou pra festar/ Vamos dançar/Vamos festar /Amanhã talvez não precise chorar(...Não se fie nas horas devagar/ Tem folha caindo pra te enforcar/ Acenderam as luzes/ E depois a lua chegou/ Cheguei atrasado /E a festa nem começou". É uma espécie de continuação de "Remédios", o ritual, a magia encantatória, tudo conspira para criar a aura que envolve a criação do grupo. O terreiro enluarado, as batidas, o tom de voz que Chico carregava e que todo o grupo leva a frente. Existe algo de muito misterioso, repito, nestes trabalhos do Nação Zumbi.

Estamos no âmago do trabalho. A liberdade parece ser o mote do Doutor Charles Zambohead , a liberdade de agir e de pensar , em paz. Paz, que é a última palavra do encarte do CD. Um lugar mítico, um estado em que o companheirismo aventureiro costura toda a irmandade (brodagem) Manguebeat. A música escolhida para ser "trabalhada" na mídia foi "Quando a Maré Encher", que foi composta por integrantes da banda pernambucana Eddie: "Fui na rua brincar/Procurar o que fazer/Fui na rua cheirar cola/Arrumar o que comer/Fui na rua jogar bola/Ver os carro correr/Tomar banho de canal/Quando a maré encher(...)Cachorro , gato , galinha, bicho de pé/ E a população convive em harmonia/ Faz parte do dia- a- dia /Banheiro, cama , cozinha no chão/Esperança em deus/Ilusão". Denúncia e danação abraçam- se numa orgia suburbana que lembra em tudo a avenida Agamenon Magalhães onde alguns garotos da favela costumavam tomar banho antes que fosse construído um dique de contenção que pôs um fim àquelas brincadeiras perigosas, o canal é imundo e banhar-se nele significa não ter medo da morte. Este canal começa em Olinda e termina em Recife. Bichos , miséria e agitação m8isturam- se em caleidoscópica poesia atiçada pelos sete componentes do NZ: Pixel 30000, Tocaia, Fortrex, Jackson Bandeira, Amaro Satélito, Djeiki Sandino e Mocambo .

Em "Antromangue/ Brasília" constatamos a parceria do malungo Chico Science (Charles Zambohead) na composição da letra: " Caminhando pelas ruas(...) Às vezes eu acho que minha fome /É uma ficção verdadeira (...) Você não sabe onde vai sua alma/ Enquanto toca a música do motor de Brasília / Estamos na América do Sul / E um vento forte sopra em seu rosto/ A tecnologia do povo/ É a vontade".

No jornal A Folha de São Paulo o crítico Pedro Alexandre Sanches reclamou: "As letras estão mais confusas(já estavam em ´Afociberdelia` ) ; o alvo do discurso é desfocado , estremece a vista quando se tenta fixá- lo; a relação conflitua- se com o que se chama pop, no sentido da acessibilidade , mais intensa do que nunca" para concluir: "A Nação Zumbi é uma das bandas mais afinadas com o seu tempo". Já o crítico José Teles do Jornal do Commercio do Recife, mangueboy de primeira instância, escreveu: "uma sutil mas fundamental diferença entre o Tropicalismo e o Manguebeat é que no primeiro fazia-se a Antropofagia Cultural e uma música que se assemelhava a uma colcha de retalho, formada pela justaposição de vários elementos. O Manguebeat, pelo menos o da Nação Zumbi, não revisitou Oswald de Andrade, em vez de deglutir as influências e regurgitá- las recicladas, optou pela aglutinação. Foi acrescentando a cada disco, tudo que os oito integrantes da banda escutaram e escutam".

No encarte do CD encontramos um texto de Hermano Viana: "O Brasil é um país de famintos . Um país que (como já disse Gilberto Gil) só conhece raiz se for de mandioca. Um país que para saciar sua eterna fome pode até misturar maracatu rural com heavy metal .Tudo isso com molho de caranguejo mutante. Do mais profundo mangue (...) conectado por transmissores. Muitas diferenças já desapareceram mas novas diferenças surgem todos os dias. A música pop é um exemplo perfeito desta nova realidade/ variedade tecno- social (...) quanto mais uma cultura tem fome de tecnologia e de inovação ...vale mais ter sua fome canalizada na antropofagia cultural certa ".

Concebido às margens do Rio Capibaribe, num casarão azul na rua da Aurora o CD apresenta ainda algumas canções instrumentais, "Coco Assssins- Bailado Capenga" , onde a rabeca de Maciel Salu ressoa magnífica, "Balada do Rio Salgado" com solos de guitarra de mestre e "Del Chifre´s Beach" que encerra este disco .

Rádio S.Amb.A = grito de resistência e de vitória.

Ave Nação Zumbi , os que vão morrer te saúdam!

Janga, Agosto de 2000.




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