Sobre a poesia de Orismar

por Lucila Nogueira



Diga-se ser a poesia o espelho perdido do menino na encruzilhada do jardim secreto onde não doía o sol. Diga-se também dos sinos tocando no alto da montanha verde de pedras prateadas da manhã. Diga-se do prazer da palavra como armadura e tecido de cetim entre o veludo das pétalas no gradil do jardim. Diga-se da poesia de Orismar Rodrigues ser a saudade dessa infância de doçura familiar, tempo longínquo e constante atravessando a memória com imagens e palavras tingidas de permanência.



O MEL DA INFÂNCIA


As bananas maduras na fruteira / Tão maduras as cascas / tinham manchas marrons escuras. // Minha tia Anália / trazendo algumas nas mãos / descascando-as –– e dizendo: / “Estão madurinhas e doces”. / Tinha que comê-las! / Hoje, na fruteira da minha casa / as bananas ficam com as cascas escuras / Sem mel, sem tia para oferece-las. // As bananas da fruteira / apenas trazem recordações. // Saudades da casa da minha tia / Anália / também me dava caramelos / (os de sua preferência ) / e bolo de trigo feito com manteiga. // Queria voltar / o tempo –– para ver / de novo minha tia Anália –– / “Se não comer, não vai para a / Rádio Jornal do Commercio”. // Saudade que sentia / da minha casa –– minha mãe, das irmãs / era ofuscada pela presença / forte, / alegre –– decidida / Minha tia Anália / toda pronta para sairmos: / cabelos presos num coque, / anel e brincos de brilhantes e ouro / sorriso feliz de franqueza bonita / raiando no rosto. // Saudade daquele tempo, / Guardado nos olhos, / num coração / hoje, / tão só... /


Caminhava na noite dos letreiros em néon, passeava nas pontes com seus lampiões, o sol e a lua cobriam os olhos do menino que crescia sua rota sobre as calçadas pernambucanas, antes de cruzar oceano rumo a países distantes. Caminhava o poeta sobre as águas misturadas das chuvas e dos rios, nuvens refletidas no cristal do guarda-louça onde sonhava com paisagens arredias, rostos imprecisos. Caminhava Orismar a sua parte de rio, o seu destino das águas.



DESTINO DAS ÁGUAS


Nas pontes do Recife; / nos rios Capibaribe / e Beberibe / e nas redes / lançadas / havia fome / hoje. // A vida seguia seu curso normal. / E os rios / Capibaribe e Beberibe / também seguiam / o seu. // Pessoas apressadas. / Sol meio apagado / (é junho –– tempo nublado) / não se derramava em ouro / manchas iguais às águas dos rios / Capibaribe e Beberibe. // Me desfiz em água... / À noite continuei sendo rio. / Águas barrentas / dos rios / Capibaribe e Beberibe / estavam no meu leito. / Agora / não haviam mais barcos, / nem redes, nem pescadores / Apenas minha história e / a história que os rios contaram / Capibaribe e Beberibe // Hoje / baronesas boiando nas águas-vida / do meu rio –– dos rios / Capibaribe e Beberibe.


O que restou afinal quando as flores retornaram ao jardim secreto e já não havia possibilidade de ser criança novamente? Palavra solta do poeta em busca das pegadas sobre a areia, tempo que não volta, caça permanente do viajante coroado de astros a entoar cantigas pré-cristãs, atravessando o espaço abobadado das colunas escondidas no subterrâneo da voz. Digo que não voltarás, guerreiro cego pela intensidade da luz, princesa adormecida entre os espinheiros de um templo de espelhos que não refletem mais as ondas silenciosas aos pés de eucaliptos na floresta cor de rosa como o riso dos que se amam nas areais cobertas de sargaços e relva verde entre roseiras e cravos.



CAÇADOR DO TEMPO


Os brejos sepultam sóis / que de meio-dia cegaram / guerreiros pássaros de céu / Assustada / a verde brisa suicidou-se / no bico de fogo do colibri de vôo azul / Restou-me um buquê de margaridas amarelas / mutiladas // Raio tirano devastou-me o jardim de esperar o sonho / assassinou o anjo benfeitor das roseiras em cachos / que aferrolhavam em calendários de abril / brancas raposas de olhos de turquesas / Prisioneira do caçador do tempo / uma rainha solitária de cabelos rebeldes da noite / vigia o sono de um viajante que traz o desalento / para o templo de cristal das certezas.


A predestinação. Fale-se agora das folhas selvagens torcidas nos caminhos amuralhados onde os pássaros rodeiam e retornam no cantar da manhã. Imagens oscilantes entre a chegada e a fuga naquela fronteira de penumbra entre a concretude e a fantasia, reino do poeta com odor e farfalhar de mudas selvagens enquanto a mais delicada palavra insiste em ser ouvida mesmo cercada de armadilhas:



ARMADILHAS


Incendiário verão de fogo

Sangram de luz os corações das flores das trevas

Assustadas com teu manto de manhãs

refugiam-se nas sombras dos canteiros

das helicônias vermelhas

guardiãs das heras queimadas de muros outrora brancos



Aprisionada a brisa de ervas doces

que tece rubras imagens esgarçadas

no coração das angélicas predestinadas de morte



É selvagem o pássaro insone de asas de ônix e olhos de rubis

guardião desventurado do reino perdido



Acorrentado por estrelas em fuga

o sonho evadiu-se moribundo

para o abismo de sol dos capins-santos


Nada mais claro para o poeta do que o terraço primordial onde as testemunhas da alegria eram todas semelhantes por dentro e por fora, não era preciso o escudo do sorriso gratuito, podia-se ficar triste à vontade, podia-se ser quem se é à vontade, até que o macadame das ruas começou a queimar os pés descalços do menino de Gravatá com os olhos brilhando de oceanos futuros e os braços encostados ao muro branco acompanhando o crescimento das plantas dentro do jardim e dentro de si, enquanto o rosto da mulher era terno era mágico era meigo entre o silêncio do sonho e o retinir do sonhado.



MÃE SINHÁ


Comíamos os cachos das flores róseas agridoces das begônias

Vida e morte aprisionadas em caqueiras de barro encantado

um terraço de verdes sonhos cercado por samambaias-tesouras

testemunhas insensíveis de verões desfeitos por suspiros enlutados



Minha avó sentada numa cadeira branca de ferro

sentenciava com seus olhos azuis

cabelos de luas presos num coque do tempo

dezembros feitos de vestidos compridos e meias longas:

“Não mecham nas plantas! Vou chamar Anita”



Rindo corríamos para o jardim

Havíamos plantado na casa feliz

um adeus amado da minha Mãe Sinhá


No futuro havia de ser o Alentejo, a ponte invisível Lisboa/Recife, navegação das águas do destino naquele que faria da viagem o seu emblema por brasões de fogo e ar e sede e sonho, mistura camoniana da galega Inês de Castro (põe-me onde se use toda ferocidade / entre leões e tigres e vereis / se entre eles achar posso a piedade / que em corações humanos não achei) Maria Bonita do Nordeste (Acorda Maria Bonita /levanta vai fazer o café / que o dia já vem raiando / e a polícia já está de pé) e finalmente Oscar Wilde (the man had killed the thing he loved / so he had to die) dentro de um fog londrino em que se aureolava Alfred Douglas, senhor e deus a desdenhar o desejo que despertara.



ALÉM-TEJO


O sonho não é mais o de ontem

Levou-o além-Tejo, aquela gaivota cinza

Nem lusíadas, nem mares antes aportáveis

salvaram-me o barco de sol

fundiado pela brisa vinda do Capibaribe

Lisboa-Recife

águas navegáveis de dor e de saudade

Desenlace atormentado de Inês de Castro e Dom Pedro

Lampião e Maria Bonita

Remoto-me à Inglaterra e visto o luto de Oscar Wilde.



E esqueceram Verlaine às margens do Sena, esqueceram Rimbaud, imagine, desde a boemia de Paris às rotas ensolaradas da Abissínia, desde o fim ao princípio, desde o princípio ao fim, esqueceram o trajeto de Gravatá ao Recife, atmosfera agreste vida simples presa nos desvãos da tarde esquecida onde o tempo passa devagar para o menino a cismar como em tela do pinto das crianças de olhos grandes, esqueceram Verlaine mas deixam ser feliz o agente da memória, deixem que seja feliz o desenho que a crueldade do mundo não apagou, deixem.



LEMBRANÇAS SEMPRES


Paris, Sena, / Degas, Verlaine / não me bastam// Faltam-me o Recife, / o Capibaribe e o Beberibe / os olhos cismadores ou sonhadores / das crianças de Reynaldo // A poesia de Bandeira // Também o trem / levando-me sonhando / de volta para minha casa de Gravatá // A lembrança sempre / do meu tio Luiz / roupa cáqui bem vincada / seu apito fazia o trem parti / Minha tia Anália de sorriso franco / acenando-me com as duas mãos.


Porque há várias maneiras de retomar o tempo e a poesia é uma delas porque há várias maneiras de alegrar a passagem do tempo e a poesia é uma delas e nem sempre a palavra do poeta quer as fitas domadoras da retórica, pode ser assim, um verso de cetim azul escondido na touceira do regato, longe da pirotecnia e do tumulto, a poesia pode ser assim, completamente íntima, completamente lírica, a paz sem artifício, viva a vida simples.



SIM E NÃO


Se me pedirem o sim, direi:/ –– No jardim a papoula branca sob o sol / é cor presa à sua verde haste. / À noite a lua cheia clareia / a face morta. // Ao não, responderei: / –– Amanhã terei o mesmo sol, a mesma lua. / O vaso branco de cristal com panamás de sangue / Reverência perpétua / do meu pai, de tia Anália, da minha avó Mãe Sinhá / Minha mãe, severa, vigiando a cria. // Sim e Não. / Meus olhos, esse momento breve, / no terraço das avencas de lembranças: / meu pai lendo sua Bíblia, / tia Anália cantando “quando eu vim do Tororó...” / Mãe Sinhá com olhos azuis apaziguando ânimos. / Minha mãe, / acreditando ser uma leoa.


Sobre a poesia de Orismar. Ondas de amor de alma marcada no encontro pagão que reverencia o Cristo, verso límpido na garrafa cristalina, quem abrirá o pergaminho sobre o rio, Orismar, o guardião do oceano e dos caminhos, o poeta com a lâmpada do ofício a clarear os sonhos e as águas, ele e o mar completamente unidos do rio Capibaribe até o Mediterrâneo, o fluxo perpétuo das marés subterrâneas, Orismar, Orismar, diz a cor com que preferes seja tecida a túnica que há de cobrir-te enquanto evocas o teu ritual de sonhos equinociais.



MAR AZUL


Com ondas mar azul / brindarei esse amor / Ao mar, ao mar azul / entrego a alma./ À noite será timoneira / Dos amantes náufragos / vagando ainda no colo / das luas cheias insepultas. // Mar azul, mar azul / batiza essa dor pagã. / Onda de sangue revolta / a bater em arrecifes dos sóis antigos.// Mar azul, mar azul, / Molha-me os olhos / cais atormentado de lembranças. / No porto sem nau / minha âncora não reteve o sonho / que Netuno levou para o mar profundo.



Lucila Nogueira

Poeta, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa da UFPE. Diretora Cultural do Gabinete Português de Leitura e da Academia Pernambucana de Letras




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