Vacilos da Paixão

Livro do jornalista Moisés Neto merece edição revisada, melhorada e à altura do artista que o inspira: Chico Science.

Kátia Borges

Chico Science é o maracatu atômico encarnado. Tiro certeiro no pé da moçada. Genuíno, profundo, desgarrado, plugado, eterno. Para os mangueboys que ele inventou e materializou na manguetown, o caranguejo com cérebro continua vivo. O jornalista pernambucano Moisés Neto registrou, em livro, a saga do Mangue Bit com deslavada paixão. Mas é justamente isso que estraga tudo. O texto equilibra-se perigosamente entre a parcialidade de quem viveu a cena e a análise teórica do fenômeno. Além disso, a edição precária compromete enormemente o que a capa e o tema prometem.
 
Ler ou não ler?, eis a questão. Ler, e de preferência ouvindo Da Lama ao Caos ou Afrociberdelia. O autor, que já editou romances e escreve para teatro, diz que o ideal seria mesmo ampliar a segunda edição (a primeira já está esgotada) e fazê-la ilustrada. Um site reproduz o conteúdo na Net, devidamente amparado por imagens. E, como se diz, uma única delas vale por mil palavras. Mas, o acesso virtual ao livro custa alguns trocados. Nada é de graça no planeta Terra. Para quem ainda não conhece a história, o livro pode ser uma boa plataforma de lançamento.

O que desanima é a repetição de alguns assuntos e a linguagem, por vezes professoral, do autor. Tudo bem que a base do trabalho foi a confecção de uma tese de pós-graduação, mas não há necessidade de publicar citações imensas em espanhol. As circunstâncias da morte de Chico também são reprisadas em demasia, com descrições perfeitamente dispensáveis, como a feita pelo cara que desceu de um ônibus para socorrer o cantor ou o que ele comeu no almoço do domingo, 2 de fevereiro, em que bateu o carro contra um poste e morreu.
 
A coisa fica mais interessante quando Moisés detona detalhes das letras do cantor, fazendo um link com a realidade de Recife e reforçando o conceito de gênio autêntico, que rondava Science em vida. É alucinante, por exemplo, entender a receita das vitaminas que Chico batia em seu cérebro de liquidificador cultural, tendo como ingredientes os tipos e causos regionais e uma postura pessoal de reverência, respeito e iconoclastia em relação ao ritmo “sagrado” do maracatu. É por esta possibilidade de entender o Mangue Bit, com ou sem paixão, que o dilema shakespeariano se resolve. Vale a pena ler o livro de Moisés Neto. Mas, o leitor merece mais: uma edição revisada, ilustrada, ampliada e à altura do artista.


Publicado no jornal A Tarde, Salvador, 26.07.2001.




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