Sobre o teatro ilusionista de Moisés Neto

por Fátima Amaral


As condições do texto teatral exigem carpintaria exclusiva. Não é um sistema anárquico.Há leitores e principalmente,espectadores que, quer possuam  atributos específicos sobre literatura e espetáculos teatrais, quer não, compartilham códigos para sua assimilação/análise, em ambos os casos, são  feitas leituras, de certa forma “exigentes”.
 
Descodificar (e avaliar uma peça teatral) é  fundamentalmente uma atitude lúdica, tanto para o leitor comum quanto para o leitor “instrumentado”. Para este último surgem os “códigos estilísticos” retóricos, temáticos, ideológicos, etc. Quanto a este(s) posicionamento(s) “crítico(s)”: como influencia(m) a arte teatral?
 
Uma peça pode ser incompreendida por muito tempo, e depois ser “recuperada”. É o caso de “O Rei da Vela” de Oswald de Andrade, por exemplo.
 
Um texto teatral, como de qualquer outro gênero, enfim, é passível de múltiplas leituras. Umas mais ricas, outras mais pobres.
 
As condições de decifração de um texto “criam”  um subproduto, um “segundo produto, melhor dizendo, (a crítica) que terá o “ranço” de seu enunciador.
 
Uma crítica sociológica, ou psicanalista, estrutural, histórico-literária, ou qualquer que seja o naipe, pode mutilar ou potencializar uma obra, mas dificilmente servirá de panacéia para a criação de outrem.
 
O significado global que atribuo aos textos de Moisés Neto presentes neste volume é mais ou menos o seguinte: trata-se de uma escrita simplista,só o “essencial” segura seus personagens cênicos.Há por trás destes personagens, uma carga ideológica com um certo tipo de “ tensão” que tentarei definir.
 
O cenário é quase sempre Pernambuco, e mesmo em tramas como  “Draculin e o Circo no Espaço” e “A Maior Bagunça de todos os Tempos” (teatro para criança), é a verve recifense quem dita as “regras” do jogo teatral.Há que se reconhecer a época e as personas retratadas, contextualizando-as e assim, buscar o que há de universal na sua proposta.
 
Nos textos de Moisés, cheios de “marcações”(indicações da movimentação teatral), há uma espécie de fixação esquemática do fluir da ação que,através da polifonia, esconde o rosto do autor.
 
Se cotarmos estes  textos usando uma ferramenta  teorética qualquer, de maneira ontológica, por exemplo, ou mesmo beirarmos o biografismo, ainda se procurarmos a gênese, veremos que nas falas e situações projetadas por Moisés, há um espelho mais ou menos fiel de uma época, de uma certa sociedade. Um espaço marcado pela inveja e pelo ressentimento. São duelos verbais, que fluem da necessidade de verbalizar emoções, num jogo retórico, numa sociologia literária, pululam desejos reprimidos, dogmas, medos, certezas e incertezas dos anos 80.
 
O que cabe e o que não cabe nestes textos? O que extrapola e do que carecem?
 
O grupo Ilusionistas, fundado por Moisés e pela atriz Augusta Ferraz em 1983, para  o qual estes textos foram escritos, tinha como objetivo principal criar seus próprios textos. Augusta, Moisés e Henrique Amaral produziam espetáculos diferentes dos encenados em Recife.
 
No trabalho do autor, as relações entre os personagens, o desenvolvimento das intrigas, a organização do tempo e do espaço às vezes cheira a vaudeville, às vezes a dramalhão de circo, drama psicológico e até à opereta, no caso de sua adaptação para o clássico “A Ilha do Tesouro” de Stevenson.
 
Uma dramaturgia urbana, entre o naturalismo e o artificialismo, que não se utiliza do folclore.
 
Desfilam personagens como Delmiro Gouveia e sua ânsia de sucesso: Prazeres,(de “Prazeres da Revolução") mergulhada num vazio existencial. Draculim, sonhador, iludido. Branca (de “A Maior Bagunça”), Faustina que lutam contra o “mal”. Isabelita, Evita, doutor Isaac( de “Horror em Pasárgada”), Dinho (de “Com a Víbora no Seio”) e Valquíria (de “Folhetim”,ainda inédita) que se vêm prisioneiros do passado. Cleópatra, uma guerreira infantilizada por uma paixão alucinante e pelo egocentrismo. Já a Medéia de Moisés é contemporânea nossa e suas estratégias articulam-se com outros textos do autor. Gil, personagem de “O Bolo”, é dominadora e tem instintos assassinos, usa seu poder para esmagar o marido inseguro. Em “Shakespeare Acorrentado” (de 1989) vemos os expoentes da pureza levados ao crime, e ao sexo ligado ao comércio. Já em “Com a Víbora no Seio”, o que vemos é um jogo homoerótico envolvendo liberdade e prisão. “Bandeira escreve a Mário de Andrade” é um texto onde Moisés deu vida ao nosso mais terno poeta lírico:a dor da perda, o paraíso artificial e irônico do mestre,são exaltados em prosa e verso.
 
Espaço e tempo injetam-se no comportamento dos  personagens em forma de juízo (de caráter valorativo e ideológico) que vai se insinuando pelos textos através de símbolos e alusões.Se há pluralidade ou subjetividade no vinco desta escrita, ou se nela encontramos algum hipotexto (matriz referencial), hipertexto (referencial intertextualizado) ou paratexto (interpenetração de textos) não importa muito, pois faz parte de um jogo proposto pelo autor, num processo meio convulsivo, típico de sua geração que  não se deteve diante dos cadáveres dos seus heróis. São textos co-presentes de uma histórica nacional caótica.Textos que buscam a oralidade acima de tudo (aspecto fono-lingüístico), gestualidade específica.
 
Os vetores temáticos oscilam como já acentuamos entre vingança, busca do sucesso, resgate do passado e busca do absoluto. A linguagem é despojada, concisa, provocante. Expõem-se enredos com desfechos inevitáveis, neles a  trama e discurso entrelaçam-se.
 
Um frenesi vai enriquecendo o fluir dos textos e é indesmentível que se pressente neles uma fome insaciável que parece devorar o autor.
 
O que Moisés tem de original é o seu formato de literatura para a “caixa cênica”. Nesta espécie de claustro, ele  brinca com a idéia de libertação, de reflexão. Quer seja de forma caricata, ou através de personagens que parecem poeticamente envolvidos com  seus sonhos, surge uma  literatura que me sugere esgrima: duelos em forma verbal.
 
O pragmatismo em  Moisés busca clarear  emoções, tornando-as inteligíveis. Mesmo que isso beire a banalização de alguns tabus (como em “Faustina” e “Com a víbora no seio”- religião e sexo). A tensão dos personagens equilibrando-se entre associações e dissociações, a busca da palavra-signo, a fantasia nas inter-relações de tipos que se digladiam entre o horror e a salvação, o sentimento e a natureza, vida e morte, oprimir ou ser oprimido: tudo isso é exposto  com um grau necessário de honestidade cínica, que às vezes  os mais sensíveis precisam para sobreviver aos ataques cotidianos da realidade. Notamos isso em Prazeres, e em outros personagens como o doutor Isaac (de “Horror em Pasárgada”): a dor de não saber dizer o que se quer por não dominar a linguagem do jogo social.
 
São personagens que parecem vindos de famílias que se desenvolveram com pouca intimidade ou calor emocional. Eles refletem isso, esquivando-se da ternura e buscando se transformar em “alguém”. As escolhas que fazem em seu desespero verborrágico, a implausibilidade dos seus ideais, a necessidade de mostrarem suas diferenças, chafurdarem nas próprias fraquezas, buscando no álcool e no sexo, um infrutífero consolo para a proximidade do abismo emocional que os rodeia (como em “Para um amor no Recife”) leva-nos a pensar mais sobre esta contracultura amalgamada por estes excluídos.Há neles todos um foco de subversão, um questionamento da tradição, uma procura pelo que é genuíno: uma ânsia de dar um  basta à letargia e passividade, tão comum no final do século vinte. Eles trazem uma espécie de alívio cômico no meio de uma grande tragédia, como os coveiros brincalhões da peça Hamlet.




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