Lygia Fagundes Telles: A Estrutura
Da Bolha De Sabão

                                       
por Moisés Neto

Lygia é cheia de pequenas delicadezas. Nas suas entrelinhas movem-se céus e terras. Nasceu em São Paulo, seu pai era promotor público, morou em vários lugares. Desde pequena gostava de ouvir / ler histórias, algumas, desde pequena, ela anotava nos seus cadernos. Gostava de recontá-las ao seu modo. Mesmo as que as assombrava, ela confessa: ao transmiti-las, livrava-se das inquietações que elas lhe causavam. Cursou Direito e Educação Física em São Paulo. Quando jovem, apreciava Casimiro de Abreu e Olavo Bilac. Escreveu para os jornais da Faculdade e depois em órgãos da imprensa. Formou-se na época da ditadura Vargas. E isso respinga em sua literatura como no Conto O Espartilho (a avó “nazista” e a neta problematicamente judia numa sociedade hipócrita/preconceituosa). Em 1944 teve seu primeiro livro de contos publicado: Praia Viva. Em 1949, o segundo: O cacto vermelho.

Alguns destes contos, retrabalhados, estão em A Estrutura Da Bolha De Sabão, inicialmente publicado em 1978. Lygia ganhou prêmios no Brasil e na França. Em 58 publica Histórias do Desencontro (Contos). Em 1954, vem o primeiro romance: Ciranda de Pedra. Em 73, publica As Meninas, romance com o qual busca detectar o perfil do jovem daquela época. Um dos contos de A estrutura..., “Missa do Galo – variações sobre o mesmo tema”, recontando Machado de Assis, é reescritura para um livro organizado pelo pernambucano Osman Lins: a conversa entre Conceição e seu hóspede, uma intertextualidade com o toque de Lygia. Quando a perguntaram sobre a função do escritor, ela respondeu: “Escrever por aqueles que esperam ouvir de nossa boca a palavra que gostariam de dizer”.

Na literatura dela, memória e invenção se confundem, se misturam. Ela se protege com a “idéia”. Boa parte dos seus contos está em 1ª pessoa e cheiram a autobiografia, como se lêssemos sobre ela. Lygia adora mergulhar nos detalhes e incógnitas / enigmas / charadas, como no 1º conto da “bolha” (“a medalha”, que a protagonista amarra no gato).

Com óbvias influencias de Clarice Lispector e Hilda Hilst, ela traz o cósmico e o erótico equilibrado em textos como “A confissão de Leontina” e “A fuga”. Pululam as reflexões sobre fidelidade, Deus, a morte e o sonho.

Ela poderia então estar enquadrada na Geração 45. A pesquisa lingüística e as inquietações temáticas.

Aborda sobretudo o universo feminino e suas diversas facetas: percepções e desejos próprios da mulher. Não que sua visão seja unilateral.

Educação castradora (“O Espartilho”), mau ambiente familiar ou relacionamento insatisfatório (“A Estrutura da bolha de sabão”) produzem o ser humano mutilado e infeliz, pessoas / personagens conflituosas, desencontradas de si ou do mundo, como Leontina, nem as crianças são poupadas: Luzia, irmã de Leontina sofre lesão cerebral e morre afogada por causa do primo Pedro, que também arruína a vida da protagonista deste conto. São personagens que buscam respostas que dêem sentido à vida. Como interagir da melhor forma com o mundo externo (como Clarice Lispector buscava), buscando interagir, querendo reconhecimento nos outros, presas ao passado dentro do presente, prisioneiras de um tempo esgarçado. Lygia prende o leitor guardando as chaves que esclarecem os dramas dos personagens. Entrega-as em uma espécie de ritual, onde ontem e hoje se confundem.

Seu enfoque é urbano e intimista, psicológico. Cheiros, lugares, objetos, roupas, sensações importam apenas como acesso ao mundo interior.

Trafega bem na burguesia, mas vai até os menos favorecidos como Leontina.

É um panorama da nossa sociedade: desestruturação do grupo familiar, dissolução dos costumes, conflito de pais e filhos, luta pela maturidade, desajuste social, miséria, desamparo, prostituição, resumindo: o relacionamento pesonagem/mundo. São romances de personagens e tem “ação” lenta. Sugerem mais que descrevem. Constantemente lança mão do discurso indireto livre. O que os personagens dizem não corresponde a uma forma convencional de ver o mundo e sim com seu estado psicológico, isso sem usar palavras difíceis nem frases que soem artificiais, pelo contrário: um texto que busca a oralidade. Quando é narrador em 1ª pessoa, ele se interrompe e faz perguntas, sugerem ao leitor sem gestos e expressões, amalgamando forme e conteúdo.
 
 
Os contos do livro A Estrutura Da Bolha De Sabão:

A Medalha: Em 3ª pessoa o narrador. Trama insólita em torno de uma jovem na época da revolução sexual, anos 60/70 racismo: há um negro com quem a protagonista deve se casar - ele é tolo - e um branco, com quem ela acabou de fazer sexo. Por trás da banalidade. Lygia sonda a alma humana.

Adriana, eis o nome da moça, chega da farra de manhã. A mãe, burguesa, chama-a de “Cadela”. Tem cabelos oxigenados de louro. Diz que é branca, mas tem “sangue podre” e assusta a mãe dizendo que os netos vão nascer morenos. A mãe diz que a filha puxou ao pai: cara de anão, pescoço curto, jeito mole, balofo. Adriana não está nem aí, vai se casar com o que for conveniente e levar a vida que quiser. A mãe ainda tenta ser tradicional e dá à filha uma medalha que estava na família há três gerações. Adriana pega. Vai para o quarto. Amarra a medalha no pescoço de um gato e o empurra porta a dentro do quanto da mãe. São apenas duas personagens, os outros são citados.

No seguno conto A Testemunha, dois amigos passeiam pela cidade em um dia de inverno. Rolf e o “esquecido” do Miguel (na casa dos 50 anos), que quer a todo custo fazer o outro lembrar do que aconteceu: “preciso saber até que ponto eu cheguei”. Ao que Rolf responde: “Somos todos normalmente loucos”. Este conto também só tem duas personagens, além de um guarda no final. Eles parecem duas metades de um só homem em busca de si (ou querendo se esquecer?). Há aqui a sombra da mãe.

Vão por uma rua escura, “quase deserta, no fim da rua, a ponte, curvo traço de união entre as margens do rio. A névoa subia densa”. Rolf é a ponte que liga Miguel ao ontem, ele não se lembra bem do que aconteceu. Miguel perdeu seu cão, o Rex. Miguel pede o último cigarro e subitamente joga o amigo da ponte: “as águas se abriram e se fecharam sobre o grito afogado, se engasgando” (Rolf não sabia nadar). Miguel amassa o pacote do cigarro e joga-o no rio. Aparece um policial e reclama: “É proibido atirar coisas no rio (...) é a lei”. Miguel se desculpa e some no nevoeiro. Livrou-se de parte do seu passado. De si mesmo?

No terceiro conto O Espartilho, parece que toda a estrutura familiar é posta em xeque. Narrativa em 1ª pessoa (Ana Luíza, órfã de um clã conservador, sua mãe era judia, o que sua avó, mãe do seu pai, faz questão de mostrar como herança genética maldita). Tricô, bíblia, álbum, chaves, cheiro de altar, seda, tesourinha, rendas, eis o campo semântico para lances abruptos: a “tia Ofélia tomou veneno um mês depois do casamento”, a família que tinha “olhos verde-água". Ana Luíza é reprimida e vê sensualidade na empregada negra que foge com um homem. Percebe a hipocrisia do jogo social burguês. Conhece Rodrigo e faz sexo com ele, tudo parece acontecer nos anos 40, “a guerra”, Hitler (a avó até que o admira); a avó dá um cheque e Rodrigo troca a neta por uma viagem. O total espartilho é metáfora da contenção emocional e do preconceito burguês. Ana fica só no final e a velha, com o espartilho, vai dormir: “os mortos já haviam sido devorados, agora era a vez dos retratos”. Aquela família estava cheia de “podres”: tio Maximiliano engravidou uma negra e foi mandado às pressas para a Europa. “Por que eu que começara tão bem, tinha que me transformar naquela mosca morta?”, pergunta-se a protagonista. Na noite de natal, os parentes se amavam e se detestavam com igual intensidade: “Sentei-me para comer sossegada minha fatia de peru”, narra. “Você parece com sua avó”, disse Rodrigo: “Uma burguesinha empoeirada”.

“O que perdi em ilusão, ganhei em segurança”, reflete a narradora Ana Luíza.

“Quer que eu tire seu espartilho?, perguntei quando meus dedos tocaram a rigidez das barbatanas.
– Não minha filha. Eu me sentiria pior sem ele. Já estou bem, vá, querida. Vá dormir.
Antes de sair, abri a janela. A Via-Láctea palpitava de estrelas. Respirei o hálito da noite: logo iríamos amanhecer”
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O 4º conto, Fuga, parece o mais estranho: em 3ª pessoa, o foco narrativo nos exibe o inseguro Rafael, que passou da idade e ainda mora com os pais, dependendo economicamente (e psicologicamente) deles. Sofre de uma doença que não ousa nem dizer o nome. Não, ele resfolega, não é asma. Está envolvido por uma misteriosa “névoa” que o absorve no meio de um parque, árvores que querem agarrá-lo. Ele quer dar de presente argolinhas de ouro para uma italiana virgem que tem joelhos que parecem “anjinhos barrocos”. Lygia usa o discurso indireto livre e joga com metáforas inusitadas, símbolos. O filho preso na teia familiar não consegue fugir: “Você sabe que não pode correr”. O conto finda com o rapaz retornando a casa e encontrando seu próprio caixão: ele estava lá dentro.

A Confissão De Leontina é o quinto conto do livro: a narradora é uma mulher pobre e de pouco verniz cultural, que reclama por não confiar em ninguém da cidade grande. Nasceu na pequena cidade Olhos D’Água e mal sabe ler e escrever, além de não ter ninguém por ela no mundo. Lembra do primo Pedro que, ao derrubar a pequena Luzia, irmã da narradora, atingiu o cérebro da menina, criada desde ali como um vegetal.

A mãe de Luzia e dela, Leontina, era uma lavadeira que criara o filho da irmã, Pedro, os poucos centavos, a melhor comida, a escola, tudo só dava a ele, em quem depositava falsas esperanças. Quando ela morreu, Leontina foi ser lavadeira. E também na formatura de Pedro, Luzia afogou-se. Pedro não a quisera no colégio, mal podia aturar a miséria da nossa narradora. Forma-se, pega o que pode e vai para São Paulo estudar medicina e fazer o possível para vencer e esquecer Leontina e todo aquele horrível passado de pobre. Obrigou-a a vender tudo que tinha e entregou-a aos cuidados de um padre que a empregou na casa de uma perversa mulher, mãe de um filho que quis abusar de Leontina.

Nossa heroína vai à luta na cidade grande fugindo do interior. Dançarina de aluguel, prostituta e... assassina?

Com tantos elementos assim, Lygia entrega ao leitor sua visão confortável de todo o nosso desconforto. É como perguntaria Machado de Assis sobre Dona Plácida, de Brás Cubas: para que existir deste modo?

A narradora dirige-se a alguém que mal conseguimos distinguir. Há um tom de tragicômico, desespero. A morte da mãe e da cachorra Titã no mesmo parágrafo revela que o mundo é dos fortes: Pedro venceu, mesmo quando nega conhecer Leo como sua prima. O primeiro “amor” da vida dela, já dançarina de aluguel: um marinheiro; seu primeiro vestido: aquele que vestiria na mãe para enterrá-la e que lhe foi deixado como herança.

“Minha mãe vivia lavando roupa na beira da lagoa (...) nunca vi minha mãe se queixar. Era miudinha e tão magra que até hoje fico pensando onde ia buscar forças para trabalhar tanto não parava (...) Pedro precisava estudar para ser médico”. Prometera a irmã e todos passavam necessidades em nome dele. E ele as renega.

Não podemos aqui falar em felicidade. Leontina é uma Macabéia (de A Hora da Estrela, de Clarice Lispector – 1977) que foi à luta e acabou na prisão. Lygia vai tecendo a trama desta pequena novela. Onde está a narradora? O que aconteceu com ela para estar assim? Com quem fala?

A ruptura com o tempo cronológico faz o leitor viajar na mente tortuosa e ao mesmo tempo simplista da personagem. '“Essa daí não é a tua irmã?", um menino perguntou. Mas Pedro fez que não e foi saindo. Fiquei sozinha no palco com um sentimento muito grande”, diz diante da primeira negativa de Pedro.

“Não conheci meu pai. Morreu antes de você nascer, respondia minha mãe sempre que eu perguntava”. A narrativa é fragmentada e trabalha o discurso indireto livre imprimindo ao texto um ritmo ágil: “Meu pai feito um Deus desaparecendo atrás da montanha com sua capa de nuvem num carro de ouro”. É um pai mítico e a menina o cria com elementos do seu universo particular: as nuvens, quando se deitava na beira da lagoa e escolhia a cara que o pai devia ter.

A velha Gertrude (e o filho João Carlos), sua primeira “patroa”, a tratara como um animal: “Nem pra ir ao banheiro eu tinha sossego que ela ficava rodando a porta e resmungando que eu devia estar cagando prego pra demorar tanto assim”.

Pontuação e estilo de Lygia, um caso à parte.

Na fuga de trem, ela vê uma “estrelinha verde brilhando lá longe” que a acalma e também nos transmite o grau poético da cena.

Rogério era o nome do marinheiro com quem ela “se perdeu”. Um quartinho de hotel/ pensão barato. Ele a chamara de Joana e não de Leontina: “Seu cabelo encacheado é igual ao de São João do carneirinho”. 2ª referência à bíblia, Pedro a 1ª: “Conte só com você que todo mundo já está até as orelhas de tanto problema e não quer nem ouvir falar do problema do outro”, sentencia Rogério ao prometer levá-la para conhecer o mar, comer uma peixada em Santos: “Aprendi a tomar banho com Rogério. Você tem que tomar banho todo dia e lavar as partes (...) em casa a gente só tomava banho de bacia em dia de festa, mas outras vezes só lavava o pé. E na casa da patroa ela não gostava que eu me lavasse pra não gastar água quente”.

Às vezes o verde da tal estrelinha ou do sabonete do marinheiro esbarram com nossa frieza de leitor: “Não sei por que pensei no meu pai quando Rogério passou o braço por baixo da minha cabeça e me chamou, Vem Joana”. Depois da vírgula o “v” maiúsculo do “vem”. Uma felicidade clandestina e efêmera de fazer amor e fumar. Dava tristeza “fazer amor” com Rogério: ia “com cara de boi indo pro matadouro”. "Ele dizia que minhas sobrancelhas eram como as asas das gaivotas.”

Ele se foi. Ela decai e numa pensão, cheia de artistas de circo, conhece Rubi, quem levou Leontina para lá foi o Milani, colega de Rogério. Personagem secundário mas Lygia os tece com carinho de mãe.

Leontina trabalha em inferninhos rodeada da escória típica destes locais: “Nunca dizia não pro freguês”.

A segunda vez que encontra Pedro - e ele fingiu não conhecê-la - foi na enfermaria da santa casa. Aqui a narradora faz a inevitável comparação com Jesus. Leontina é tentada.

Ao apreciar um vestido marrom com rosa de vidrilho vermelho no ombro, ela é assediada por um velho rico dono de jornais “e mais isso e mais aquilo”: “Amaldiçoada para que enveredei por aquela rua e parei naquela vitrina. O vestido estava numa boneca e tinha o meu corpo”.

O duplo está estabelecido: o jogo completamente armado. O ritual do sacrifício se encaminha para um desfecho dramático: ela deixa na loja o vestido branco. O velho a proíbe de voltar. Ele lhe comprara o vestido que ela queria. A estrada, o repúdio, o carrão, a estrada: “Era rico e feio com aquele jeito de peru do bico mole molhado de cuspe (...) boca inchada e roxa como se tivesse levado um murro”.

“O bofetão veio nessa hora e foi tão forte que me fez cair no banco (...) o punho do velho desceu fechado na minha cara. Foi como uma bomba (...) achei uma coisa pura e fria no chão. Era o ferro...”.

Depois de tudo ela volta à loja para buscar o vestido branco a polícia está lá. A vendedora dera a reconhecer.

Em Missa do Galo, Lygia disseca a intertextualidade com o conto de Machado de Assis, no qual nos é apresentada uma mulher da segunda metade do século XIX: Conceição, casada, vítima de um marido adúltero, que a deixa praticamente só numa noite de Natal. Esta senhora mantém um insinuante diálogo com um hóspede adolescente, o Nogueira (que é leitor, tal qual a senhora, de romances românticos, como Os três mosqueteiros, ou os do senhor Joaquim Manuel de Macedo). Ele faz hora esperando um amigo para juntos irem à tal missa do galo.

Ela “deixou travesseiro e quarto numa disponibilidade sem espartilho, livre o corpo” e Lygia cria um narrador que vai invadindo o espaço do não dito, nas entrelinhas, de Machado, coloca até na alcova do adúltero com uma certa “mulata”.

A relação do jovem Nogueira com Conceição também é, digamos assim, intensificada nesta recriação. Lygia apimenta-a, vasculha-a como um psicanalista provocador.

O insólito é observado: “Durante o dia Conceição parece tão objetiva, eficiente. E agora esta inconsistência”. Seu narrador observa pelas vidraças da casa, ele está na rua da “noite antiguíssima”. Sente desejo de entrar e vive um tempo anacrônico como a interferência de uma lembrança de algo escrito em um caminhão (!): “Matérias perecíveis”. Mas “aquela casa”, o narrador contrapõe, é “imperecível”, no ”bojo de tempo”. A obra de Machado.

Conceição: “bruxa” ou “belíssima”? Quer gritar, é hora de calar: “Vocês sabem que dentro de alguns minutos será nunca mais?”, pergunta-nos. O menino de 17 anos estará na igreja e ela no quarto.

Parece Clarice Lispector, amiga de Lygia: “Faça alguma coisa”, pede o narrador insistentemente com o coração pesado diante desses dois indefesos no tempo.

Metalinguagem e intertextualidade aqui se confundem quando o amigo do rapaz chega, ele vai para a missa, Conceição volta para o quarto e o narrador conclui: “Quando volta ao quarto, pisa na tábua do corredor, aquela que range. Rangeu, paciência! Agora está desinteressada da mãe e da tábua.
No canapé, a almofadinha das guirlandas um pouco amassada.
Apago o lampião.”


No conto Gaby, o penúltimo do livro, somos apresentados ao protagonista de apelido Andrógino, na verdade o mesmo do arcanjo, Gabriel. Ele está no bar com o garçom, Fredi, chegam clientes. Espelhos, mármore (balcão), ventiladores, calor. É pintor de “natureza morta”. Na infância a mãe o protegia. Tem uma amante velha pela qual sente repulsa, mas precisa do dinheiro dela. Ama uma jovem que não o suporta mais (Mariana). Vive com tédio a situação-limite em que chegou sua vida. É um indefinido a contemplar a vida. O pai doente está se acabando numa pensão pobre, sozinho. O garçom também é um insatisfeito.

Mariana tinha um primo deputado da oposição: “subversivo”. Esse conto fica datado nos anos 60/70. “Gabriel por que você não acaba o que começa?”. O pai dizia que o apelido “Gaby” era afeminado, nome de esmalte, creme, de mulher”.

Há uma “mosca” ao redor de Gaby durante quase todo o conto. A lembrança da velha com bochechas murchas, pintadas, com a peruca meio ridícula. A lembrança de ter denunciado ao pai que a mãe, que tanto o protegia, tinha um amante com um carro vermelho. Gaby fora reprovado duas vezes na escola. Na segunda parte do conto, Gaby recebe a carta de despedida de Mariana. Chora. Amadureceria um dia? Querer fugir dos beijos da velha, da dentadura dela. É um gigolô com problemas psicológicos, meio cafajeste inocente (?), traumatizado. A mãe desaparecera, “Como milhares desaparecem”. Está pintando uma maçã. Tudo é o vazio que se abate sobre tanta gente. Pensa de novo em matar a velha, que, ao perceber que ele estava um pouco febril, prepara-lhe um chá. Ele morde a maçã.

No conto A estrutura da bolha de sabão, Lygia cria um narrador em primeira pessoa: uma mulher que encontra o ex-marido com a atual esposa num bar. Sente ciúme e testa a incomunicabilidade entre os seres, a aprendizagem dos sentimentos: uma delicada teia de relacionamentos. Ele é físico e estuda a estrutura da bolha de sabão (sólida/líquida/gasosa): híbrida. Ele, ela percebe aos poucos, está com uma doença terminal. Ela pensa na própria infância, revê sua vida em labirinto: “No escuro eu sentia essa paixão contornando sutilíssima meu corpo”. Lygia é dona de uma sintaxe especial, particular. Pratica o intimismo com maestria. Sua poesia narrativa é uma espécie de ritual sem sangue, sem grito: “Amor de transparência e lembranças condenado à ruptura”.

Em relação à outra mulher, a narradora mostra-se superior: “Como ele podia amar uma mulher assim?”. São frases insólitas como: “Me refugiei nos cubos de gelo amontoados no fundo do copo”. Ela tem ciúmes e ao saber da doença do ex-marido vai à casa dele. É recebida pela fulana que agora ocupa o “seu” lugar. Quando a “outra” sai, ela se aproxima do homem que já foi seu. Ela não tem nome no conto. Ela flui. Ele usa um roupão verde, mãos “branquíssimas”, está quase lívido. Ela começa a sentir uma falta e não sabia do que era. Descobre: “Ô! Deus – agora eu sabia que ele ia morrer”.

Este final vago e brusco nos conduz ao amor interrompido, petrificado em narrativa de prosa lírica, urbana, metafísica? Tecida com mãos de carinho e confiança, em ternura pressentida por Lygia dentro de nós, seus enigmáticos leitores.

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Moisés Neto

Professor com pós-graduação em Literatura, escritor, membro da diretoria do SATED (Sindicato dos artistas e técnicos em espetáculos de diversão em Pernambuco).


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