Machado de Assis: monstro sagrado das
Letras Brasileiras

                                       
pesquisa feita por alunos

Machado de Assis escreveu em quase todos os gêneros literários praticados no seu tempo. Se não logrou em toda a excelência que atingiu nos contos e nos romances, jamais descaiu para os níveis da subliteratura e, mesmo o teatro, tido como a produção “menor” de Machado, tem momentos bem realizados.

A poesia: Em Crisálidas, Falenas e Americanas, livros que encerram a poesia romântica de Machado de Assis, são evidentes as sugestões temáticas e formais da poesia de Gonçalves Dias, Casimiro de Abreu e Fagundes Varela: o lirismo sentimental, a poesia indianista, a natureza americana.

Ocidentais revela maior apuro formal e contenção de linguagem, aproximando-se das diretrizes do Parnasianismo. A poesia de cunho filosófico, a reflexão sobre o ser, o tempo e a moral constituem os momentos melhor realizados do livro, onde se incluem poemas antológicos como: Soneto de Natal, Suave Mari Magno, A Mosca Azul, Círculo Vicioso, No Alto e Mundo Interior. É sempre uma poesia discreta, sem arrebatamentos, reflexiva e densa, culta, teórica, correta, mas quase sempre ausente de emoção e vibratilidade.


SUAVE MARI MAGNO*

Lembra-me que, em certo dia.
Na rua, ao sol de verão,
Envenenado morria
Um pobre cão.

Arfava, espumava e ria,
De um riso espúrio e bufão,
Ventre e pernas sacudia
Na convulsão.

Nenhum, nenhum curioso
Passava sem se deter,
Silencioso,

Junto ao cão que ia morrer,
Corno se lhe desse gozo
Ver padecer.

(*) Suave Mari Magno são as palavras iniciais de um verso de Lucrécio (“De Rerum Natura”): expressa a satisfação de quem se vê livre dos males de outrem.


A CAROLINA

Querida, ao pé do leito derradeiro
Em que descansas dessa longa vida,
Aqui venho e virei, pobre querida,
Trazer-te o coração do companheiro.

Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro
Que, a despeito de toda a humana lida,
Fez a nossa existência apetecida
E num recanto pós um mundo inteiro.

Trago- te flores, — restos arrancados
Da terra que nos viu passar unidos
E ora mortos nos deixa e separados.

Que eu, se tenho nos olhos malferidos
Pensamentos de vida formulados,
São pensamentos idos e vividos.


Este soneto está incluído como dedicatória do livro de crônicas e contos Relíquias da Casa Velha (1906), que Machado, já viúvo, dedicou à sua esposa e companheira, Carolina. Curiosa esta pungente manifestação de afeto e ternura de um homem, em cujos romances, as mulheres são sempre pérfidas, volúveis, interesseiras, dissimuladas, e que, citando Schoppenhauer, dizia a todo tempo: “mulheres são animais de cabelos longos e idéias curtas”.

Observe a sintaxe classicizante do primeiro terceto e o gosto por arcaísmos e termos inusuais em “malferidas”, “humana lida” etc. A seleção vocabular, o cuidado com a rima e a métrica são aspectos da aproximação de Machado às regras do Parnasianismo.

O contista Machado de Assis, para muitos, supera o romancista. Coube a ele dar ao conto densidade e excelência insuperáveis em nossa literatura, fundando esse gênero, e abrindo caminhos, pelos quais, mais tarde, iriam trilhar Mário de Andrade, Clarice Lispector, para ficarmos em apenas dois machadianos modernos.

Distinguem-se duas fases: a primeira, dita “Romântica”, com os livros; Contos Fluminenses e Histórias da Meia-Noite. A segunda, Realista, inclui os melhores contos: Papéis Avulsos, Histórias sem Data, Várias Histórias e Relíquias da Casa Velha.

Na fase romântica, a angústia oculta ou patente dos personagens é determinada pela necessidade de obtenção de “status’ quer pela aquisição de patrimônio, quer pela consecução de um matrimônio com parceiro mais abonado. Segredo de Augusta e Miss Dollar antecipam a temática de A Mão e a Luva, o dinheiro como móvel do casamento, O tema da traição (suposta ou real), antes de aparecer em Dom Casmurro, já estava nos contos A Mulher de Preto e Confissões de uma Viúva Moça.

Nessa primeira fase, a mentira é punida ou desmascarada. Há nisso um laivo de moralismo romântico, na pregação de casos exemplares. Mas essa linha será, a seguir, superada, ainda na fase romântica. Em A Parasita Azul, o enganador triunfa pela primeira vez, O cálculo frio, o cinismo, a máscara e o jogo de interesses constituem o corno desse realismo utilitário, para o qual pendem especialmente as personagens femininas, capazes de sufocar a paixão, o amor em nome da “fria eleição do espírito”, da “segunda natureza, tão imperiosa como a primeira”. A segunda natureza do corpo é o ‘status”, a sociedade que se incrusta na vida.


O ALIENISTA (CONTO): O Doutor Simão Bacamarte, cientista de nomeada, monta, em Itaguaí, um hospício, a Casa Verde, onde pretende executar seus projetos científicos. Pretende separar o reino da loucura do reino do perfeito juízo, mas a confusão em que ambas se misturam acaba aborrecendo o Doutor, que, para levar a efeito a seleção dos loucos, tem que saber o que é a normalidade. Assim, qualquer desvio do que era o comportamento médio, a aparência pública, qualquer movimento interior, que diferisse da- norma da maioria era objeto de internação. O hospício é a Casa do Poder, e Machado de Assis sabia disso. No início, o projeto do Dr. Simão Bacamarte é bem recebido pela população de Itaguaí, mas a aprovação cessa quando o médico passa a recolher na Casa Verde, pessoas em cuja loucura a população não acredita. O barbeiro Porfírio lidera uma rebelião contra o hospício que é sufocada.

Numa primeira etapa, são internados os que, embora manifestassem hábitos ou atitudes discutíveis, eram tolerados pela sociedade: os politicamente volúveis, os sem opiniões próprias, os mentirosos, os falastrões, os poetas que viviam escrevendo versos empolados, os vaidosos etc.

Para pasmo geral dos habitantes de ltaguaí, Simão Bacamarte, um dia, solta todos os recolhidos no hospício e adota critérios inversos para a caracterização da loucura: os loucos agora são os leais, os justos, os honestos etc. A terapêutica para esses casos de loucura consistia em fazer desaparecer de seus pacientes as “virtudes”, o que o Dr. Simão Bacamarte consegue com certa facilidade. Declara curados todos os loucos, solta-os todos e, reconhecendo-se como o único louco irremediável, o médico tranca-se na Casa Verde, onde morre alguns meses depois.

Além dos contos já mencionados, são da maior importância estes outros: Singular Ocorrência, Cantiga de Esponsais, A Missa do Galo, O Enfermeiro, A Cartomante, Noite de Almirante, Uns Braços, O Caso da Vara, Pai contra Mãe, que se destacam entre cerca de 200 obras-primas do gênero que Machado deixou. Em todas elas predominam: o pendor filosofante; o extraordinário poder de concisão e síntese; a agilidade e finura da observação psicológica das personagens; o final surpreendente; o humor; a ironia e o ceticismo.

Os romances “românticos”: os primeiros romances de Machado de Assis, Ressurreição, A Mão e a Luva, Helena e Iaiá Garcia, podem ser considerados experiências para o salto qualitativo que viria com as Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), que inauguram a fase Realista de Machado.

Ainda que se tenha vulgarizado a designação de romances “românticos”, essas primeiras experiências com a ficção de maior fôlego não se enquadram nos estreitos limites da ficção propriamente romântica: não há idealização das personagens, a tensão bem versus mal, herói versus vilão, não é nítida. Caberia melhor a designação de romances “convencionais”. Já existem nesses romances os traços que serão constantes na fase realista: a observação psicológica e o interesse como o móvel principal das ações humanas. Mesmo as heroínas ditas “românticas” de Machado de Assis agem movidas pelo interesse, pelo desejo de ascensão social, e não pelo amor.


Ressurreição

Narra a história de FÉLIX, emocionalmente instável e sacudido a todo momento por impulsões de ciúme, na conquista da viúva LÍVIA. Cansada do comportamento de Félix, Lívia decide tornar definitiva a separação.

O caráter de “experiência” fica evidente na ADVERTÊNCIA com que Machado apresenta a primeira edição do romance: “Não sei o que deva pensar deste livro; ignoro sobre tudo que pensará dele o leitor. A benevolência com que foi recebido um volume de Contos e Novelas, que há dois anos publiquei me arrastou a escrevê-lo. É um ensaio. Vai despretensiosamente às mãos da critica e do público, que o tratarão com a justiça que merecer".

E, concluindo a Advertência: “Minha idéia ao escrever este livro foi pôr em ação aquele pensamento de Shakespeare: Our doubts are traitors,/And make us lose the good we might win./By fearing to attempt.

Não quis fazer romance de costumes; tentei o esboço de uma situação e o contraste de dois caracteres; com esses simples elementos busquei o interesse do livro. A crítica decidirá se a obra corresponde ao intuito, e sobretudo se o operária tem jeito para ela.

É o que lhe peço com o coração nas mãos.

1872 — Machado de Assis."



A Mão e a Luva

Narra a história de GUIOMAR, moça altiva e segura de si, que procura, com frieza e calculismo, realizar o ambicioso plano de ascender socialmente, compensando a sua modesta origem. Três homens pretendem a mão de Guiomar: ESTEVAM, JORGE e LUÍS ALVES. O primeiro sincero, porém simplório; o segundo, indolente e superficial. Luís Alves, ambicioso e sagaz, acaba sendo o eleito, pois personificava as qualidades que se sintonizavam com o espírito de Guiomar, que, ao escolhê-lo, faz, segundo suas próprias palavras, “a fria eleição do espírito.”


Helena

A história de uma moça que, de uma forma inesperada, sobe na escala social: morre o Conselheiro Vale e, no seu testamento, consta que Helena, moça internada num colégio de Botafogo, é sua filha, cujo segredo o conselheiro mantivera até a morte. Helena passa a viver com Úrsula, irmã do conselheiro, Estácio, agora meio-irmão, Dr. Camargo, amigo de Vale e médico da família, e Eugênia, filha do Dr. Camargo. Helena em face de seu temperamento expansivo e comunicativo, conquista a afeição de D. Úrsula e de Estácio. Mendonça, amigo de Estácio, apaixona-se. Helena passa a ser objeto de afeição do próprio irmão, que, no entanto, está noivo de Eugênia. O padre Melchior, guia espiritual da família, suspeita dos freqüentes encontros entre Helena e Salvador. O mistério é esclarecido: Salvador é o pai de Helena, que fora arrebatada pelo conselheiro, encarregando-se de sua educação.

Helena, profundamente chocada com o estado de coisas, mesmo com a possibilidade de poder casar com Estácio, não agüenta a emoção, adoece e morre.


Iaiá Garcia

Iaiá era filha de Luis Garcia, viúvo e funcionário público, que nela concentrava todos os seus afetos. Quando a história principia, ele está com quarenta e um anos. Iaiá, com onze, estuda em colégio interno e, nos fins de semana, é a fonte de toda a alegria do pai, em cuja casa reina a solidão. Luís Garcia tem uma amiga, também viúva, Valéria Gomes, mãe de Jorge. Jorge está apaixonado pela filha de um ex-empregado de seu falecido pai, Estela, que vive na mesma casa. Para afastá-lo de Estela, por não a julgar digna de sua posição social, a mãe força-o a alistar-se como voluntário para lutar na guerra contra o Paraguai. Mas Jorge não esquece a sua amada e tem verdadeiro choque ao saber que ela se casara com Luís Garcia, que a isso foi levado, entre outras razõeS, pelas boas relações entre Estela e sua filha Iaiá.

A partir dai, a história evolui ao longo do tempo, com o regresso de Jorge, sua mãe já morta, á influência do novo amigo que fizera no Paraguai, encontros e desencontros, risos e lágrimas, até a morte de Luis Garcia. E Jorge acaba por se casar com Iaiá. Nesta história singela, ao gosto romântico e o seu tanto convencional, Machado de Assis começa a revelar as qualidades que mais tarde farão dele um grande romancista: a finura de estilo, o senso de humor que já reponta aqui e ali, a recriação de ambientes, a exata caracterização de personagens, principais ou secundários, como Raimundo, o preto africano, escravo liberto e inteiramente dedicado a Luis Garcia. Mas está longe ainda dos seus grandes momentos de criação literária, que se iniciam a partir do romance seguinte, Memórias Póstumas de Brás Cubas.


OS ROMANCES REALISTAS

Foi a partir de Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), que Machado atinge o ponto mais alto e equilibrado da ficção brasileira. Alinhavamos, a seguir, alguns aspectos da ficção machadiana:

A ruptura com a narrativa linear: Os fatos e as ações não seguem um fio lógico ou cronológico; obedecem a um ordenamento interior, são relatados à medida que afloram à consciência ou à memória do narrador, num processo que se aproxima do impressionismo associativo

A organização metalingüística do discurso narrativo: é comum, na ficção machadiana, que o narrador interrompa a narrativa para, com saborosa e bem-humorada bisbilhotice, comentar com o leitor a própria escritura do romance, fazendo-o participar de sua construção; ou ainda, para dialogar sobre uma personagem, refletir sobre um episódio do enredo ou tecer suas digressões sobre os mais variados assuntos. Machado assume a posição de quem escreve e ao mesmo tempo se vê escrevendo. Esses comentários à margem da narração constituem o principal interesse, pois neles está a mensagem artística do escritor.

O universalismo: Machado captou na sociedade carioca do século XIX, os grandes temas de sua obra. O seu interesse jamais recai sobre o típico, o pitoresco, a cor local, o exótico, tão ao gosto dos românticos. Buscou, na sociedade do seu tempo, o UNIVERSAL, a essência humana, os grandes temas filosóficos: a essência e a aparência; o caráter relativo da moral humana; as convenções sociais e os impulsos interiores; a normalidade e a loucura, o acaso, o ciúme, a irracionalidade, a usura, a crueldade.

A pobreza de descrições, a quase ausência da paisagem são ainda desdobramentos dessa concentração na análise psicológica e na reflexão filosófica. As tramas dos romances machadianos poderiam, sem grandes prejuízos à narrativa, ser transplantadas para qualquer época a qualquer cidade.

As influências: Machado de Assis esteve acima dos modismos da época. Enquanto Gustave Flaubert, pai do Realismo, defendia a superioridade do “romance que se narra a si mesmo”, ocultando por completo a figura do narrador, Machado subverte essa regra, intrometendo-se na narrativa, fazendo com que o leitor identifique sempre, por trás e acima do narrador, a existência do escritor Machado de Assis.

Autodidata, Machado adquiriu sólida formação clássica: Shakespeare, Dante Alighieri, Cervantes e Goethe eram suas leituras obrigatórias. Mas os modelos que seguiu mais de perto foram os do século XVIII: o “esprit” de Voltaire, sua ironia cortante; além do refinado “sense of humour” dos autores ingleses — Sterne e Swift.

Os grandes arquétipos: Uma das linhas mestras da ficção machadiana parte do aproveitamento dos arquétipos, que remontam à tradição clássica e aos textos bíblicos. Arquétipo = modelo de seres criados; padrão exemplar; imagens psíquicas do inconsciente coletivo e que são o patrimônio coletivo de toda a humanidade.)

Assim, o conflito dos irmãos Pedro e Paulo, em Esaú e Jacó, remonta ao arquétipo bíblico da rivalidade entre Caim e Abel; a psicose do ciúme de Bentinho, em Dom Casmurro, aproxima-se do drama de Otelo e Desdêmona, de Shakespeare.

O pessimismo: Machado revela sempre uma visão desencantada da vida e do homem. Não acreditava nos valores do seu tempo e, a rigor, não acreditava em nenhum valor. Mais do que pessimista ou negativista, sua postura é “nihilista” (“nihil” = nada). O desmascaramento do cinismo e da hipocrisia, do egoísmo e do interesse, que se camuflavam sob as convenções sociais é o móvel de grande parte da ficção machadiana.

A ironia, o humor negro.

O psicologismo: A ação e o enredo perdem a importância para a caracterização das personagens. Os acontecimentos exteriores são considerados somente na medida em que revelam o interior, os motivos profundos da ação, que Machado devassa e apresenta detalhadamente. Dai a narrativa lenta, pois o menor detalhe, o menor gesto são significativos na composição do quadro psicológico; nada é desprovido de interesse. Esta fixação pelo pormenor é o que se denomina “microrrealismo”; é a ausência de ação, aliada à densidade psicológica e filosófica, que afasta o adolescente do texto machadiano, que supõe um leitor “maduro”. É corrente a impressão de que os romances de Machado são muito “parados”, impressão fundada no hábito de leitura de obras centradas na ação exterior: folhetins, romances de aventura, policiais, narrativas de complicação sentimental, à maneira dos filmes de sucesso comercial, das novelas da TV e dos “best sellers” americanos.

Estilo “enxuto”: Machado prima pelo equilíbrio, pela disciplina clássica, pela correção gramatical, e pela concisão, pela economia vocabular. Ao contrário, da nossa congênita tendência ao uso imoderado do adjetivo e do advérbio, tão ao gosto de Castro Alves, de Alencar, de Rui Barbosa etc., Machado é parcimonioso, sóbrio, quase “britânico”. Não é, contudo, uma linguagem simétrica e mecânica, porém medida pelo seu ritmo interior, donde o segredo da unidade da obra.


Memórias Póstumas de Brás Cubas

É a obra inaugural da fase Realista de Machado de Assis, representando uma verdadeira revolução de idéias e formas: de idéias, porque aprofunda o desprezo pelas idealizações românticas, fazendo emergir a consciência nua do indivíduo, fraco e incoerente; de formas, pela ruptura com a linearidade da narrativa e estilo “enxuto”. O drama da irremediável tolice humana. São as memórias de um homem igual a tantos outros, o cauto e desfrutador Brás Cubas, que tudo tentou e nada deixou. A vida moral e afetiva é superada pela biologicamente satisfeita, e as personagens se acomodam cinicamente ao erro.

O romance é a autobiografia de Brás Cubas, narrador-personagem que, depois de morto, na condição de “defunto-autor”, resolve escrever suas memórias. Por estar morto, Brás Cubas assume uma posição transtemporal. de quem vê a própria existência já de fora dela, “desse outro lado do mistério”, de modo onisciente, descontínuo e sem a pressa dos vivos. Os fatos são narrados à medida que afloram à memória do narrador, que vai tecendo suas digressões, refletindo sobre seus atos, sobre as pessoas, exteriorizando uma visão cínica, irônica e desencantada de si próprio e dos outros.

De tudo o que Brás Cubas narra sobre, sua vida, salientam-se seus amores juvenis por Marcela, uma prostituta de luxo, que quase dá cabo da fortuna da família. Para curar-se desta paixão, Brás Cubas é enviado para a Europa, de onde volta doutor, às vésperas da morte da mãe. Depois de um inconseqüente namoro com Eugênia, moça pobre, bonita e defeituosa de uma perna, Brás Cubas fica noivo de Virgília, cujo pai poderia favorecer a almejada carreira política do rapaz. Virgília, no entanto, lhe é roubada por Lobo Neves, também candidato a uma carreira política, porém mais decidido do que Brás Cubas.

Anos depois, Brás Cubas – um solteirão – e Virgília – esposa de Lobo Neves – tornam-se amantes. Vivem, por algum tempo, nesse romance, a paixão que não viveram quando noivos. Depois a paixão esfria, mas se reacende quando Virgília fica grávida de um filho de Brás Cubas. A criança morre antes de nascer e os amantes separam-se. Sabina, irmã de Brás Cubas, arranja-lhe uma noiva — a nhá Loló (Eulália) que, no entanto, morre vitima de uma epidemia. Sem objetivos na vida e entediado, Brás Cubas reencontra Quincas Borba, um colega de infância que se diz filósofo e que expõe a Brás Cubas sua filosofia, o Humanitismo. No primeiro reencontro dos dois ex-colegas, Quincas Borba, pobre e miserável, rouba o relógio de Brás Cubas; mais tarde, graças a uma herança. refaz suas finanças e repõe o relógio.

Quincas Borba enlouquece e Brás Cubas, procurando uma forma de viver menos tediosa, tenta, em vão, a política. Perseguindo a celebridade, pensa em produzir um remédio que levará seu nome — o emplastro Brás Cubas. Irônica e tragicamente, porém, numa de suas saídas à rua para cuidar de seu projeto, molha-se na chuva e apanha uma pneumonia da qual vem a falecer, acompanhado, em suas últimas horas, de alguns familiares e de Virgília.


Quincas Borba

Narrado na 3ª pessoa, é considerado o mais objetivo dos romances de Machado. É um desdobramento da problemática e da narrativa de Memórias Póstumas; é a estória de um professor mineiro, Rubião, para quem o filósofo Quincas Borba (personagem que já aparecera em Memórias Póstumas de Brás Cubas) deixa todos os seus bens, com a condição de que o herdeiro cuide de seu cachorro, também chamado Quincas Borba. De posse da fortuna e tendo aprendido de Quincas Borba algumas frases de sua filosofia, o Humanitismo, Rubião muda-se para o Rio de Janeiro. Desabituado com a vida na cidade grande, cercado de pessoas que vivem de seu dinheiro, Rubião apaixona-se por Sofia, mulher de Cristiano Palha, seu sócio. Ao saber da corte de Rubião à sua mulher, Palha divide-se entre dois sentimentos o ciúme que tem da mulher fá-lo pensar em atitudes radicais, mas sua dependência econômica de Rubião o leva a não querer ofender o sócio.

Sofia, astuciosamente, consegue manter intatos, tanto o interesse de Rubião, quanto a fidelidade conjugal. Lentamente, Rubião começa a agir de maneira estranha: acredita-se Napoleão, fantasia a realidade, fala sozinho na rua e, pouco a pouco, perde toda sua fortuna e também a razão. Arruinado, Rubião deixa de ser útil e é abandonado pela roda de parasitas que o cercava. Palha e Sofia afastam-se cada vez mais e ele acaba sendo internado num asilo de onde foge para voltar a Minas. Morre lá, em pleno delírio de grandeza, acompanhado de seu cão Quincas Borba e repetindo urna frase do Humanitismo: “Ao vencedor, as batatas”.


Dom Casmurro

Narrado em 1ª pessoa, Bentinho (D. Casmurro) propõe-se a “atar as duas pontas da vida”. Ao evocar o passado, o narrador-personagem coloca-se em um ângulo neutro de visão. Dessa maneira, pode repassar, sem contaminá-los, episódios e situações, atitudes e reações. Simultaneamente, opõe a esse ângulo de reconstrução do passado, o ângulo do próprio momento da evocação, marcado pelo desmoronamento da ilusão de sua felicidade. Dessa forma, temos uma dupla visão da experiência, reconstituída em termos de exposição e de análise (Prof Antônio Cândido).

A visão esfumaçada do adultério é intencional. Dele o leitor só tem provas subjetivas, a partir da ótica do narrador, que nele acredita.

O enredo é o seguinte: órfão de pai, criado com desvelo pela mãe (D. Glória), protegido do mundo pelo circulo doméstico e familiar (tia Justina, tio Cosmo, José Dias), Bentinho é destinado á da sacerdotal, em cumprimento a uma antiga promessa de sua mãe.

A vida do seminário, no entanto, não o atrai, lá de namoro com Capitu, filha dos vizinhos. Apesar de compro metida pela promessa, também D. Glória sofre com a idéia de separar-se do filho único, interno no seminário. Por ex pediente de José Dias, um agregado da família, Bentinho abandona o seminário e, em seu lugar, ordena-se um escravo.

Correm os anos e com eles o amor de Bentinho e Capitu. Entre o namoro e o casamento, Bentinho se forma eu Direito e estreita sua amizade com um ex-colega de seminário, o Escobar, que acaba se casando com Sancha, amiga de Capitu.

Do casamento de Bentinho e Capitu nasce Ezequiel. Escobar morre e, durante seu enterro, Bentinho julga estranha a forma pela qual Capitu contempla o cadáver. A parti dai, os ciúmes vão aumentando e precipita-se a crise. A medida que cresce, Ezequiel se torna cada vez mais parecido com Escobar. Bentinho, muito ciumento, chega a planejar o assassinato da esposa e do filho, seguidos pelo seu suicídio, mas não tem coragem. A tragédia dilui-se na separação do casal.

Capitu viaja com o filho para a Europa, onde morre anos depois. Ezequiel, já moço, volta ao Brasil para visitar o pai, que apenas constata a semelhança entre o filho e o antigo colega de seminário. Ezequiel volta a viajar e morre no estrangeiro. Bentinho, cada vez mais fechado em suas dúvidas, passa a ser chamado de casmurro pelos amigos e vizinhos e põe-se a escrever a história de sua vida (o romance).


Esaú e Jacó

O título é extraído da Bíblia, remetendo-nos ao Gênesis e à história de Rebeca, que privilegia o filho Jacó, em detrimento do outro filho, Esaú, fazendo-os inimigos irreconciliáveis. A inimizade dos gêmeos Pedro e Paulo, do romance de Machado, não tem causa explícita, daí a denominação de romance “AB OVO” (desde o ovo). É o romance da ambigüidade, narrado em 3ª pessoa, pelo Conselheiro Aires. Pedro e Paulo seriam “os dois lados da verdade”. À medida que vão crescendo, os irmãos começam a definir seus temperamentos diversos: são rivais em tudo. Paulo é impulsivo, arrebatado, Pedro é dissimulado e conservador – o que vem a ser motivo de brigas entre os dois.

Já adultos, a causa principal de suas divergências passa a ser de ordem política – Paulo é republicano e Pedro, monarquista. Estamos em plena época da Proclamação da República, quando decorre a ação do romance. Até em seus amores, os gêmeos são competitivos. Flora, a moça de quem ambos gostam, se entretém com um e outro, sem se decidir por nenhum dos dois: é retraída, modesta, e seu temperamento avesso a festas e alegrias levou o Conselheiro Aires a dizer que ela era “inexplicável”. O conselheiro é mais um grande personagem da galeria machadiana, que reaparecerá como memorialista no próximo e último romance do autor: velho diplomata aposentado, de hábitos discretos e gosto requintado, amante de citações eruditas, muitas vezes interpreta o pensamento do próprio romancista.

As divergências entre os irmãos continuam, muito embora com a morte de Flora, tenham jurado junto a seu túmulo uma reconciliação perpétua. Continuam a se desentender, agora em plena tribuna, depois que ambos se elegeram deputados, e só se reconciliam ao fim do livro, com novo juramento de amizade eterna, este feito junto ao leito da mãe agonizante.


Memorial de Aires

Ultima obra de Machado de Assis, foi publicada em 1908, mesmo ano da morte do escritor. Como Memórias Póstumas de Brás Cubas, esta obra não tem propriamente um enredo: estrutura-se em forma de um diário escrito pelo Conselheiro Aires (personagem que já aparecera em Esaú e Jacó), onde o narrador relata, miudamente, sua vida de diplomata aposentado no Rio de Janeiro de 1888 e 1889. Sucedem-se, nas anotações do conselheiro, episódios envolvendo pessoas de suas relações, leituras do seu tempo de diplomata e reflexões quanto aos acontecimentos políticos. Destaca-se, dando uma certa unidade aos vários fragmentos de que o livro é composto, a história de Tristão e Fidélia.

Fidélia, viúva moça e bonita, é grande amiga do casal Aguiar, uma espécie de filha postiça de D. Carmo. Tristão, afilhado do mesmo casal, viajara para a Europa, em menino, com os pais. Visitando, agora, o Rio de Janeiro, dá muita alegria aos velhos padrinhos. Tristão e Fidélia acabam por apaixonar-se e, depois de casados, seguem para a Europa, deixando a saudade e a solidão como companheiros dos velhos Aguiar e D. Carmo.

Memorial de Aires é apontado como o romance mais projetivo da personalidade e da vida de Machado de Assis. Escrito após a morte de Carolina, revela uma visão melancólica da velhice, da solidão e do mundo. D. Carmo, esposa do velho Aguiar, seria a projeção da própria esposa de Machado, já falecida. A ironia e o sarcasmo dos livros anteriores são substituídos por um tom compassivo e melancólico, as personagens são simples e bondosas, muito distantes dos paranóicos e psicóticos dos romances anteriores. Alguns vêem no Memorial de Aires uma obra de retrocesso a concepções romantizadas do mundo; outros tomam o romance como o testamento literário e humano de Machado de Assis.

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Moisés Neto

Professor com pós-graduação em Literatura, escritor, membro da diretoria do SATED (Sindicato dos artistas e técnicos em espetáculos de diversão em Pernambuco).


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