Relendo Branca de Neve

                                        por Moisés Neto
(Trecho da palestra conferida pelo professor Moisés Neto no auditório da FAFIRE no 8º Encontro de Literatura Infanto-Juvenil.
Recife, 23 de maio de 2002)


Tentar buscar o significado das coisas e da vida é tarefa constante, e decifrar a vida neste aprendizado vale ouro.

Nossa herança cultural aparece imediatamente como um desafio: vale a pena acumularmos conhecimentos, quando dentro de nós eles não nos dão estímulos? Não tornam claras as  nossas emoções? Não harmonizam nossas necessidades e  aspirações? Se esses conhecimentos não sugerem soluções para os problemas que nos perturbam?

Esses mesmos questionamentos devem ser feitos quanto aos produtos culturais que são oferecidos às crianças. Para receberem conhecimentos além dos infames seriados de tv do tipo Digimon e Dragonball , contrapõe-se o que antigamente foi o papel das fábulas e dos contos de fadas.

As histórias para o público infanto-juvenil parecem recheadas de ensinamentos de “como viver corretamente” e fortalecer-se para enfrentar melhor a vida. E aí os contos de fadas (hoje auto-ajuda seria um termo mais adequado, ou mesmo produtos tipo Harry Potter da escocesa J.K.Rowling, ou O Senhor dos Anéis do “classudo” Tolkien) surgem como um verdadeiro mapa da mina, cheio de “mensagens” que poderiam ajudar os pequenos rumo à vitória pessoal, diante da morte, do envelhecimento, do mal e do poder que nos quer oprimir e que às vezes se encontra dentro da própria família, como é o caso  de Potter.

Foi pensando assim que adaptei em 1991 o conto “Branca de Neve” , versão dos irmãos Grimm, para  o teatro. Intitulei a peça como “A Maior Bagunça de Todos os Tempos”, e ela  ficou em cartaz durante alguns meses num teatro do Recife  . A princesa Branca, o príncipe e a rainha “má” que batizei como Lola, (em homenagem a um personagem  interpretado por Marlene Dietrich)  foram erotizados propositalmente pelo figurinista .  No texto, os três pareciam saídos dos escritos de Maquiavel. Acrescentei o personagem do Ministro Goma, do reino falido do príncipe. Este personagem, além de servir de mediador entre os protagonistas e os antagonistas, era um modo de denunciar a loucura que vivia o Brasil no início dos anos 90. A princesa Branca era prepotente e sua madrasta uma balzaquiana narcisista. O príncipe queria parte do reino da menina. Transformei os sete anões num só: o anão Banana, um fura-greves ridículo e atrapalhado. Massa de manobra dos poderosos, inocente útil, bode expiatório para situações delicadas. Há também um personagem-arquétipo: o Corvo, que servia de apoio às maldades da Rainha. Forjei um final feliz, ou quase, para todos, até para o anão bobalhão e para o Corvo, que termina se transformando num príncipe quando quase perde a vida para salvar sua diabólica rainha, com quem vai se casar depois. Vai aí um pouco de zoofilia, dessas madames com seus bichinhos de estimação. O final feliz do anão minerador é poder bajular em paz os seus patrões.

Alguns professores acharam que eu exagerei na violência, a peça abria com o caçador tentando assassinar  Branca, a mando da Rainha Má.

As personagens do conto Branca de Neve são estereotipadas e lineares (como é típico dos contos de fadas). A enteada adolescente vence a madrasta malvada, contando para isso com a ajuda de homens. Impossível vencer a beleza e a juventude, nesse caso unidas ao que poderíamos chamar “bondade” natural. Que passado na vida da madrasta levou-a, digamos assim, a ser...tão...cruel  com Branca? Chegando ao ponto de querer “comer” suas entranhas? No final, o castigo da rainha traz embutida a idéia de que quando um dos pais teme a “concorrência” do filho, isto termina em tragédia (como em Édipo). Ou quando superestima suas bondades também se dá mal, como em Rei Lear. Pobre Cordélia!

Branca de Neve é um dos contos de fadas mais conhecidos através dos tempos na Europa e suas colônias. Os anões: não crescem, não têm filhos, nem pais.  Servem para realçar o triunfo de Branca (que se liberta do poder opressor da mãe).

Numa das versões folclóricas, Branca teria sido adotada por um conde e uma condessa perigosa que queria livrar-se dela por ciúmes. Em outras versões, o pai da menina (ou o padrasto) por quem as duas “duelariam”, nem aparece (no caso da versão para cinema dos estúdios Disney, por exemplo).

No tempo que passa com os anões, Branca estrutura seus problemas e eles se resolvem (talvez momentaneamente).

No conto dos Grimm, a mãe de Branca morreu de parto e o rei casou-se novamente um ano depois, a gente sabe com quem!

Quando Branca completa 7 anos a rainha fica perturbada com a beleza da ninfeta. No conto, Branca não trabalha no castelo: Disney a coloca como uma borralheira, uma empregada doméstica, quase. Aliás, na versão de Disney, os anões (pobres) só têm 4 dedos em cada mão e dizem coisas como “as mulheres são diabólicas” ou “a rainha sabe de tudo”. Usam totens indígenas e curtem música country ianque (na cena em que caem na farra com Branca) e sacodem o traseiro várias vezes. Trabalham muito (para quem?) mas são pobres.

Em Disney sabemos que só o primeiro beijo de amor despertaria a princesinha. Mas...beijar uma morta não é necrofilia? (mesmo que ela estivesse num caixão de vidro e ouro) Isso acontece sob a vigilância severa dos anões (perversão?).

No final o que vemos é o triunfo do poder monárquico (hoje, burguês) sobre os pobres. Seria o caçador que salvou Branca da morte no início do conto (não teve coragem de matas-la) na floresta, uma representação do pai? Um pai fraco, inútil, ineficaz? Daí a menina ter de se virar sozinha com outros homens? (Os anões, o príncipe) A floresta poderia ser símbolo de muita coisa também. Em Disney até os troncos no rio parecem ferozes jacarés. Disney também não permite que a menina durma na cama com os anões, o que acontece no conto.

No conto dos Grimm, a madrasta queria comer o pulmão e o fígado da enteada. Disney foi mais sutil: nele, a malvada quer apenas o coração da menina numa caixa.

Nos Grimm, os anões avisam a Branca que não deixe ninguém penetrar na casa . A Rainha, disfarçada de vendedora de roupas, “sufoca” Branca com um cinto. Ela sobrevive.Com outro disfarce, a madrasta volta com um pente envenenado. Branca sobrevive. Na 3ª vez, a da maçã (Amor e sexo? Pecado original?), a mocinha se dá mal. No conto, a malvada  divide a maçã (come a parte boa) com  a princesa, que come a parte envenenada. Uma coruja (sabedoria), um corvo (consciência) e uma pomba (amor) visitam a “morta”. E o príncipe que chega, faz com que, tossindo, a menina expulse o pedaço de maçã que a sufocava. A Rainha é obrigada a calçar sapatos em brasa e dançar até morrer. Em Disney, ela é praticamente empurrada pelos anões num precipício (cai durante a fuga)

Com a “ressurreição”, Branca atinge a maturidade. E para os jovens, que acompanharam tamanha intriga, resta o ouro da experiência.
 
BIBLIOGRAFIA:
Bettelheim, Bruno. A psicanálise dos contos de fada. Ed. Paz e Terra, SP, 1992.
Oremstein, Catherine. The evolution of a fairytale. New York: Basic Books, 2002.

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Moisés Neto

Professor com pós-graduação em Literatura, escritor, membro da diretoria do SATED (Sindicato dos artistas e técnicos em espetáculos de diversão em Pernambuco).


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