Análises dos livros “O Mulato”, ”Memórias de um Sargento de Milícias”, “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, “A Lenda dos Cem”, “São Bernardo” e "Estrela da Manhã"

                                        por Moisés Neto e Fátima Amaral


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O MULATO

Aluísio Azevedo (São Luís, MA, 1857-Buenos Aires, Argentina,1913), traz no seu texto uma aproximação com a sintaxe lusitana, e neste livro naturalista, aponta alguns vícios de linguagem do Nordeste brasileiro. Há em “O Mulato” uma forte crítica à hipocrisia da vida provinciana de São Luís, caricaturada aqui na forma de anticlericalismo(o padre, depois cônego Diogo é devasso, mentiroso e assassino), denuncia do preconceito racial (eixo da trama), foco no aspecto sexual (a paixão do protagonista, Raimundo, e Ana Rosa, sua prima, é “carnal”) mas, o golpe final é exibir ao leitor o triunfo da maldade e mostrar que o “mulato”,não era também tão inocente assim, afinal era preconceituoso e tinha lá suas “taras”. Mas o autor também o idealiza.
Raimundo tem olhos azuis, cabelos lustrosos, tez amulatada , mas fina, apesar da mãe dele ser “negra retinta” e o pai “branco”.

Aluísio, como sabemos é determinista e atribui ao meio, raça e ao momento, uma força irresistível.

A trama parece com as do Romantismo: uma história de amor que as tradições e o preconceito impedem de se realizar. A diferença está na “despreocupação” com a moralidade, na literatura “engajada”, na observação e análise da realidade, nos temas da patologia social(taras, vícios, problemas sociais/familiares, miséria, adultério, criminalidade, desequilíbrio psíquico, problemas ligados ao sexo).

Com a publicação de “O Mulato”(1881) teve início o Naturalismo no Brasil(vindo da França, Emile Zola). Aluísio também sofre influência de Eça de Queiroz.

Azevedo vivia do que escrevia(depois tornou-se diplomata) e escreveu tanto dramalhões quanto romances “engajados”.

O protagonista Raimundo ignora a própria cor e condição de filho de escrava(Domingas), não entende porque sofre o preconceito da sociedade de São Luís, ele, que era um doutor formado na Europa!

A família de Ana Rosa o humilha. No final os namorados planejam fugir e ele é assassinado e Ana Rosa casa com um homem de “bem” (o caixeira Dias, assassino de Raimundo).

Há uma sátira aos maranhenses: o rico grosseiro, a beata mau-caráter, o padre depravado e conivente. O autor era contra a sociedade reacionária de sua cidade, que ao se identificar na trama que ele criou fica chocada.

A narração em 3ª pessoa (onisciente) exibe Domingas (ex-escrava de José Pedro, pai de Raimundo) como vítima dos ciúmes de Quitéria (mulher de José) que mandou queimar as “partes sexuais” da antiga escrava.

Pressionado pela mulher, José não vê outra saída a não ser entregar o filho bastardo para que Manuel Pescada, que “apadrinhou” o rapaz, o criasse.

Um dia José Pedro encontrou sua mulher mantendo relações sexuais com o padre Diogo na sua cama. Matou a esposa.O padre viu e calou para escapar do escândalo. Mas o tal vigário trama a posterior morte do José. O tempo passa e Raimundo forma-se e pretende casar-se com Ana Rosa. O caixeiro Dias ajudado pelo (já) cônego Diogo, assassina,com um tiro pelas costas, o mulato Raimundo.

A família da moça (que estava grávida, do primo mas fez aborto), principalmente sua avó, fica mais tranqüila quando a menina faz o casamento de conveniências e gera “três filhinhos”.


MEMÓRIAS DE UM SARGENTO DE MILÍCIAS

Manuel Antônio de Almeida (médico, jornalista e funcionário público carioca, 1831-1861)

Aos 22 anos, o autor, sob pseudônimo de “um brasileiro”, publicou este romance picaresco em forma de folhetim. Isto não significa que se trate de um dramalhão.Pelo contrário, a história do malandro Leonardinho, que só quer se dar “de bem”, tem ginga e malícia, o “veneno da raça” brasileira, seu cheiro e tempero à maneira de personagens anti-heróicos, modalidades de pícaros.

Manuel Antônio, posteriormente, viu sua obra transformada em livro (1854-1855). É bom lembrar que o senhor Almeida ajudou um jovem iniciante nas Letras: Machado de Assis.

Este “Memórias de um Sargento de Milícias”, é uma caricatura cheia de astúcia para exibir a decadência urbana da sociedade do Rio de Janeiro no início do século XIX.Tem enredo meio comédia pastelão, exagerada e popularesca, numa linguagem jornalística que buscava retratar o Rio da época de Dom João VI (o “rei”). São memórias, mas o narrador está em 3ª pessoa e não exprime uma visão de classe dominante. A linguagem busca o tom coloquial.

Leonardinho, cujo pai Leonardo Pataca fora traído pela mulher (Maria das Hortaliças, mãe do protagonista), assistiu à sua mãe abandonar o lar. O menino é enjeitado pela mãe e depois pelo pai. Vai ser criado pelo padrinho e depois pela madrinha. O jovem transforma-se num conquistador barato e só quer saber da boa vida. Conhecemos com ele um Rio de Janeiro apimentado.

Um jogo social e amoroso surge: Leonardinho quer se casar com Luisinha, mas ela descobre que ele é amante de Vidinha, então... ela casa com José Manuel – partido mais seguro conforme pensara a tia de Luisinha.

Nem tudo estava perdido: Leonardinho foi preso pelo Major Vidigal (chefe de polícia). Por meio de algumas trapaças sai da cadeia, já como “praça”. É preso novamente. Novos “golpes” da sorte o transformam em “sargento de milícias” (tropas). Luisinha fica viúva e cai nos braços do (ex?) malandro. Vão casar-se.

O texto é ágil e faz-nos refletir sobre os tipos, crendices, ambientes e costumes daquela época.”Início” da malandragem carioca. Apesar disto, não é realista. Trata-se de um Realismo espontâneo, arcaico. Alguns críticos o apontam como um romance de “transição”. É um caso a se pensar.

Leonardinho é comparável a outro herói sem nenhum caráter: Macunaíma , do romance paulista de Mário de Andrade (1928-Modernismo).

Filho de um beliscão e de uma pisadela - Imigrantes, os pais dele se conheceram numa viagem de navio para o Brasil, e usaram um artifício em moda: ele pisou no pé dela e ela deu-lhe um beliscão nas costas da mão esquerda. Engravidou na viagem. Quase todos os personagens nesta narrativa são “trambiqueiros”. É o “jeitinho” brasileiro nos seus primórdios. Não há idealização dos personagens, que geralmente são de classe inferior: barbeiros, comadres, parteiras, meirinhos (oficiais), saloias (cariocas maliciosas, no que lembravam, as camponesas que viviam perto de Lisboa).

Há uma ruptura com o maniqueísmo bem/mal, herói/vilão, típico do Romantismo. (nivelamento)

Para driblar a miséria e se dar bem, os personagens fazem o que for possível. ”O espelhamento foi distorcido apenas pelo ângulo da comicidade”, disse o professor Alfredo Bosi. Predomina a imaginação e o improviso sobre a reconstituição histórica e as indicações documentárias são reduzidas, daí à denominação Romance de Costumes.

Manuel Antônio de Almeida é “o primeiro a fixar em literatura o caráter nacional brasileiro”, a criar um estilo “próprio da comicidade popularesca ou das manifestações de cunho arquetípico – o início do romance lembra a frase padrão do contos infantis: “Era no tempo do Rei”. No mesmo campo, vemos as “fadas boas” (Padrinho e Madrinha) e o tipo agourento (a Vizinha), que vivia dizendo que o menino jamais chegaria a ser padre.

Vemos, no romance, categorias sociais típicas. Como exemplo da descrição dos costumes temos a Procissão dos Ourives (o retrato físico e moral de um povo); a Estralada, a festa animada de aniversário da cigana – mulher com quem o mestre de cerimônias foi pego em trajes menores (por Leonardinho); a capoeiragem – que exibe o traço físico e moral do capoeira; as festas religiosas, etc.

Podemos afirmar que o romance é social não por seu caráter documentário, mas por exibir “o ritmo geral da sociedade” e dos tipos que a formam.

Observar esquema:

Leonardo Pataca
(pai)
pisadela/beliscão
Mª das Hortaliças
(mãe)
Leonardinho (desordem)
(herói?)
Soldado
Sargento
Luisinha
Vidinha
Major Vidigal      X      Maria Regalada
(ordem)            (ex-amante de Vidigal)


O autor morreu no auge da carreira num naufrágio. Era 2º oficial de negócios da Fazenda.Deixou um drama lírico (“Dois Amores”), algumas traduções e sua tese de Doutoramento.


MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS

Joaquim Maria Machado de Assis (Rio 1839-1908) foi romântico, parnasiano e realista.É desta última fase o romance “Memórias Póstumas...” (1881), livro que serve de “marco inicial” desta escola no Brasil.

Vemos a ele: ruptura com a narrativa linear, metalinguagem, pessimismo, ironia/humor negro, citações a autores clássicos (Sthendal, por exemplo), psicologismo,estilo enxuto, desprezo pelas idéias românticas.

Brás Cubas é um homem comum; que não consegue escapar da mediocridade em vida: tudo tentou e nada deixou: “Não alcancei a celebridade (...) não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento (...) coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do meu rosto (...) ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo (...) não tive filhos, não transmiti a ninguém o legado da nossa miséria”.

Estas são as palavras finais do livro, uma “autobiografia” de Brás,narrador-personagem, “defunto-autor” (não autor-defunto) onisciente! Senhor do tempo e do espaço, conta sua história de forma não linear, como dissemos.

Jovem, amou: a prostituta Marcela que quase arruinou o patrimônio da família dele, Eugênia, menina pobre e deficiente física, Loló (Eulália),que morreu e Virgília, que casou com Lobo Neves,tornando-se posteriormente amante do narrador (quando vivo). Virgília chega a ficar grávida de Brás. O filho morre antes de nascer.Há que se destacar o personagem dona Plácida, uma alcoviteira que cuidava da casinha da Gamboa.

Brás é um burguês entediado e sem um objetivo firme na vida.Um dos seus amigos,Quincas Borba, empobrecido torna-se filósofo (funda a doutrina do Humanistismo). Depois de enriquecer devolve um relógio que roubara do narrador e mergulha em peculiar loucura.

Cubas tenta produzir um “emplastro”, um remédio que levaria seu nome. Pegou uma pneumonia e veio a falecer antes disso. Narra seu velório enterro e fala dos pouquíssimos amigos que a ele compareceu.

Ao referir-se à própria infância diz que foi “incompleta” e “negativa”, a mãe foi “fraca, de pouco cérebro e muito coração”. E ele foi um “menino diabo (...) dos mais malignos”, batia nos escravos. O pai era omisso nessas horas. Há também a irmã, Sabina.

Machado deita e rola nas “inovações” narrativas. Há “capítulos- pílulas, outros só com reticências (cap. CXXXIX: “De como não fui Ministro d´Estado”)

Este romance foi publicado a primeira vez em folhetim (!) em 1880.O cinismo em jogar com a realidade, a fantasia, o desencanto de existir e a importância da experiência no jogo social, este baile de máscaras, empolgaram os leitores de Machado, fascinados por suas técnicas narrativas, seus truques e seu perfeccionismo.

Há que destacar o capítulo CXVII - O Humanitismo: “sistema de filosofia destinado a arruinar todos os demais sistemas (...) só há uma desgraça: é não nascer (...) nenhum homem é fundamentalmente oposto a outro homem, quaisquer que sejam as aparências contrária (...) do indivíduo que estripa a outro; é uma manifestação da força de Humanitas. Nada obsta (e há exemplos) que ele seja igualmente estripado (...) a inveja não é senão admiração que luta, e sendo a luta a grande função do gênero humano, todos os sentimentos belicosos, são os mais adequados à sua felicidade. Daí vem que a inveja é uma virtude”.

O escritor mostra-se no auge de sua concepção materialista do universo. Com frieza, “sentimento amargo e áspero” e rabugens de pessimismo um defunto-autor conta a história de sua vida, da família e da sociedade da qual fez parte.

Desprovido de qualquer crença na sinceridade dos gestos humanos ou grandeza deles Brás Cubas exibe a podridão dos homens, o jogo de aparência (ser x parecer), o amor por interesse, as formas de ascensão social, mas só o faz porque está do outro lado da vida (não passa, portanto, de um covarde.).

O que chama nossa atenção é a desordem aparnte do contar. Começa com O óbito do autor, vai para a origem da famímia Cubas, volta para a doença – O Delírio, vai para o dia em que nasceu (o dia em que brotou uma graciosa flor, o herói da casa), segue com um episódio de 1814, salta a parte da escola (um salto) que culmina em O primeiro beijo e na prostituta Marcela e segue na desordem que, na verdade, põe em relevo o comportamento humano. As lembranças surgem e são registradas de modo a exibir o homem não como ser supremo da criação, mas como o vil verme: “Trata-se de uma obra difusa na qual eu, Brás Cubas, se adotei a forma livre de um Sterne...”

Machado despreza as simetrias, o discurso pomposo. Investe na clareza, na sutileza da linguagem, na concisão do estilo. Seu leitor será tratado de várias formas: bobo, ignorante, esperto, “alma sensível” – ao dirigir-se ao leitor de vários modos deseja dialogar e convencer. Usa do humor, da ironia, fragmenta o texto lança mão da multidisciplinaridade de fatos, faz muitas paradas na história (digressões), usa um narrador que emite opiniões, julgamentos e torna tudo relativo (seu narrador é onisciente intruso – sabe tudo e antecipa para o leitor). “Nenhuma verdade é absoluta”, tudo depende do interesse de cada um. Tanto faz o narrador afirmar algo como destruir. Nada é absoluto, nem as filosofias da época ironicamente parodiada no capítulo HUMANITAS.

Outro aspecto importante no texto é o uso de intertextos: “’Que bom que é estar triste e não dizer coisa nenhuma!’ Quando esta palavra de Shakespeare me chamou a atenção, confesso que senti em mim um eco...” (p. 46); com a Eneida de Virgílio: “Arma virumque cano” (p. 48) (canto as armas e o varão, verso inicial da epopéia de Virgílio), com o texto bíblico ao usar referências a episódios bíblicos tais como: “Bem-aventurados os que não descem” (p. 54), “O caminho de Damasco”. “No caminho de Damasco, ouvi uma voz misteriosa, que me sussurrou as palavras da Escritura (Act., IX, 7): Levanta-te, e entra na cidade” (p. 55). Brás Cubas faz referência ao episódio da conversão de São Paulo. A origem dessa voz tem como fim mostrar o que pensava Brás Cubas sobre Eugênia, a menina bela, porém coxa. Nele, misturam-se dois sentimentos terríveis: a piedade para com a coxa e o terror de vir a amá-la e desposá-la. Os intertextos são muitos: Pascal, Sterne, Swift, Camões, etc,. Entram sempre para revelar mais e mais o comportamento dos personagens.

Faz uso constante das repetições (de idéias, de imagens – a idéia do emplastro sempre retorna: “Descida o leitor entre o leitor entre o militar e o cônego; eu volto ao emplastro”). A idéia da morte, do tempo. Machado discute ainda a forma como vai construindo seu romance (Metalinguagem):

“Este livro e o meu estilo são como os ébrios, guinam à dirita e à esquerda, andam e param.”

Toda narrativa visa a confirmar que a índole de um homem é “efeito das relações sociais”, que a “boa ação dele” nada mais é do que a certeza de ver-se admirado por todos:

“(Cotrim) não era perfeito decerto; tinha, por exemplo, o sestro de mandar para os jornais a notícia de um ou outro benefício que praticava (...) desculpava-se dizendo que as boas ações eram contagiosas, quando públicas...”(p. 124)

O mesmo acontece com Brás Cubas ao descobrir um remédio que iria curar a humanidade de todos os males O Emplastro Brás Cubas. Na verdade, o que ele queria era ver o seu nome estampado em todos os lugares.

O remorso é outro aspecto desconhecido pelos personagens a confirmar que precisamos observar as circunstâncias e os lugares em que se econtram, contemplar o gesto vil dos homens por partes. Lembremos o Brás Cubas no capítulo XXI – O Almocreve. O jumento em que estava empaca e Brás Cubas fustiga-o. Este saiu dando corcovos, jogou Brás Cubas fora da sela, deixando-o com o pé esquerdo preso. Disparou pela estrada a fora. Seria a morte certa se não fosse a ajuda de um condutor de bestas – o almocreve – que dominou o bruto. A primeira reação do narrador (o sangue agitado) foi dar ao condutor três moedas de ouro (das cinco que achara na praia). O sangue esfriou e ele pensou em “duas moedas de ouro. Talvez uma”. Olhou para o almocreve, um homem pobre, constatou-o. Chegou a tirar as moedas de ouro hesitou. Trocou por um cruzado, afastou-se com remorso, mas ao ver o almocreve grato, refrescou a alma, a consciência. Eis a Lei da Equivalência das janelas. Afastou-se mais e sentiu no bolso umas poucas moedas de cobre, achou que estas seriam suficientes, afinal que fizera aquele pobre homem a não ser reagir por instinto, “um impulso natural”. Brás Cubas vai diminuindo o mérito do rapaz até nenhum. Com esta reflexão, acaba-se o “remorso”: “Era preciso arejar a consciência.” p. (111) – a consciência sem remorso e o universo todo subordinado à ponta do nariz: equilíbrio das sociedades.

Não esqueçamos a abertura do livro “Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas memórias”. Machado abre o romance fazendo uso de um tom cáustico, sombrio indício de como será o seu romance e de como vê a humanidade: cada um por si, a mostrar sua superioridade veja o caso, por exemplo, do escravo alforriado Prudêncio que vergalha um negro na praça só para mostrar-se domínio. (Cap. LXVIII).

Filosofismo, ironia amarga, reflexão profunda em torno do trágico da condição humana, da ´sem –razão´ de tudo(...) apenas um indivíduo louco poderia passionalmente apegar-se à vida(...) antipositivismo(...) sátira(...) cosmovisão machadiana. Numa literatura carente de inquietação filosófica ou existencial, as memórias póstumas de Brás Cubas constituem exceção de superior quilate, a desafiar esfingicamente gerações de leitores e críticos”, disse Massaud Moisés.

Machado abraçou “como fado eterno dos seres o convívio entre os egoísmos(..)veio-lhe sempre do espírito atilado um ´não´ao convencional, um ´não´ que , o tempo foi sombreando de reservas, de ´mas´, de ´talvez´, embora permanecesse até o fim como espinha dorsal de sua relação com a existência(...)linguagem da ambigüidade”, disse Alfredo Bosi.

Desde sua fase romântica ele combateu a apologia da paixão amorosa, contrapondo a isso um frio jogo de interesses e fala das máscaras que o homem afivela à consciência tão firmemente que acaba por identificar-se com elas”.

É Machado contra a pieguice,distanciando-se para melhor criticar e paradoxalmente entreter a sociedade, numa conversa meio informal com seu leitor.

Touché! É a comédia dos equívocos.Não há heróis.”Há apenas destinos sem grandezas”, observou Bosi ao referir-se ao “bruxo da rua Cosme Velho, como Drummond chamou Machado no poema “A um bruxo, com amor”(do livro “ A vida passada a limpo, de 1959).


A LENDA DOS CEM

do pernambucano (São Bento do Una) Gilvan Lemos

Todos os capítulos iniciam-se com sueltos (pequenos tópicos) tirados de uma suposta publicação intitulada “O pernambucano” seção “Há um século”.As referentes a 1946,49,56,59,63,64 e 70, foram adaptadas de tópicos constantes no livro “Aos Trancos e Barrancos- Como o Brasil Deu no que Deu”, de Darcy Ribeiro. Os outros (1922, por exemplo) o autor “inventou”.

No 1ª capítulo vemos 2 capangas de Meneses assassinando Joca Correia(na verdade João Panta, filho da índia Nacha e do comerciante protestante Mardônio(que era casado com Benvinda). O crime se dá na presença de Pedro Correia (Peto, que é salvo na ocasião pelo seu padrinho Brás, também assassino, capanga de Meneses, que vai encaminhar o menino para ser educado noutro lugar),filho da vítima e neto do cacique Olímpio Picha,avô de Nacha, da fictícia tribo dos Xacuris.Os dois capatazes são homossexuais.Assim como o é também o mandante do crime, Meneses,chefe oligárquico do interior de Pernambuco.

O tópico que abre o livro já fala de norte-americanos que seqüestram crianças brasileiras para usá-las como cobaias em experiências científicas em Nova York. Uma característica de Gilvan: ele é crítico feroz do imperialismo ianque, representado neste livro por Mr. Rodber (que é gay) e sua gangue.

O autor não se curva aos que cultuam somente a forma nem faz concessão aos que preferem o enredo.Se ele emociona e empolga em “A Lenda dos Cem” (ed. Civilização Brasileira. 285 páginas. SP 1995) e nos faz pensar num filme de faroeste caboclo nordestino “antropológico delirante” que narra a saga de 3 gerações de uma tribo de índios pernambucanos, é porque expõe a violência, os crimes, o heroísmo e a impunidade que grassam neste estado do Nordeste há tanto tempo, quer seja no interior ou em Recife.

A aculturação indígena, a guerrilha, a luta pelo poder, o delírio, a dramaticidade, a miséria, vão rodopiando num torvelinho bem urdido que é a escrita do mestre Gilvan.

A narrativa é não-linear a saga dos Xacuris é narrada desde 1922 (cem anos de “independência”) até os anos 70, com a tribo esfacelada.

A “lenda dos cem” a que se refere o título quem conta é Olímpio, o cacique decadente: num tempo antigo os brancos vieram e selecionaram os cem jovens mais fortes e sadios dos Xacuris. Mataram o resto da tribo. Amarraram os cem ,como se fossem contas de um estranho rosário. Um escapou misteriosamente. Os índios foram suprir a mão de obra escrava que escasseou. Este que fugiu era protegido de Tupã. Voltou encantado e libertou os irmãos, reconduzindo-os ao lugar onde existira a tribo: arrasado e deserto. Num passe de mágica faz aparecer mulheres xacuris e uma plantação. Assim a tribo se recompõe. E é em nome desse Moquê que Olímpio lidera o que restou da tribo muito tempo depois e tenta enfrentar os americanos e o pessoal de Meneses que queriam as terras para seus negócios pessoais(minas e fábricas). As metralhadoras dos brancos vencem os Xacuris. Só escaparam Nacha, Antônio Panta (com quem ela se “casa”,já grávida de Mardônio), Pichá (que se junta ao bando de Lampião e Corisco e, já velho nos anos 60/70 vai participar de guerrilhas, onde morrerão Rodber e Meneses).

Gilvan separa os Xacuris em dois blocos: os que se embriagam e prostituem na cidade de Santana da Serra e os que ficam na aldeia: “Nacha se deslumbrara com as bolhas mutantes da gasosa,com receio até de desmancha-las, embora sabendo que as ingerindo mais se deslumbraria” (p.18)

A narrativa constantemente se utiliza do discurso indireto livre sem pudores em relação a palavrões ou vícios de linguagem: “punhetinha”, “cacunda”, “inda, “sustança”, “muito olhuda, boca sangrosa”. Há também neologismos como “somiticaria”(p.46) e “desvisível” (p.49)

Nacha é descrita como “casmurra” e tendo “olhos oblíquos”.

O autor é materialista, anticlerical e não perde um efeito cômico, mesmo quando o assunto é massacre indígena, ato sexual, desintegração da família, moralidade.Tudo explode em êxtase verbal crítico e recheado de humor negro que se misturam a “buchada” e carne de sol, casinhas de taipa,bodoque, juá, bacurau. Gilvan é classe média politizada: horroriza-se com o “jeitinho brasileiro” e o descreve com raiva e um certo cinismo. Clama por vingança e justiça.Os Xacuris viviam no vale do Iurubá,banhavam-se no rio Añun (“maternalmente acolhedor,o líquido adaptável ao corpo, morno na superfície, friinho nas profundezas, um frio morno, misturado 2-p.42). Viviam em casinhas simples, uma igreja(padre depravado e ladrão, que aparecia raramente), uma escola que não funcionava. Consideravam-se “pobres”.A única cerimônia que os unia aos antepassados era o Torém (ritual). “O coco se aparentava às danças dos antigos Xacuris” (p. 43). A maioria era analfabeta e não tinham registro da terra que o imperador demarcara (p.39).Estranhavam a ambição dos brancos(p.44).

Cita tribos do sertão/agreste de Pernambuco: Pankararus (de Tacaratu); Tukás (Cabrobó); Kambiwás (Inajá); Xucurus (de Cimbres); Atikuns (de Floresta); Fulni-ôs (de Águas Belas). Espoliados, descaracterizados, roubados vergonhosamente(p.50).Eis a crítica.

Joça Correia (João Panta, que fugiu da mãe, Nacha, e do pai indígena,Antônio- na verdade era filho de branco,Mardônio) vai ser criminoso e termina como Édipo: assassina o próprio pai sem saber. Meneses manda matar Mardônio,já velho, porque ele queria investigar o massacre dos Xacuris). A vítima teve seu pênis (imenso) cortado e enfiado na boca.

Ao se relacionar com uma prostituta gerou Peto, o que no início viu este pai ser morto a pauladas como um cachorro e que se vinga matando Meneses no final da trama.

A vida de Peto: Brás o deixa com um casal que o repassa para um professor (Nobre,por cuja filha, Lurdinha, Peto vai nutrir uma paixão não correspondida) que tem uma escola decadente no Recife. Peto passa num concurso público para ser funcionário da Previdência Social, depois de enfrentar a miséria no centro do Recife. Presencia o golpe militar de 64 e testemunha as barbáries dos anos de chumbo. Volta a Santana da Serra para vingar a morte do pai. Encontra Nacha, (quando é seqüestrado por Pichá, que, velho, se transformou em guerrilheiro/assaltante).A velha índia vê no rosto de Peto algo de Mardônio, e algo do próprio filho (o louro JOCA, João Panta/Correia, sobrenome que, ela não sabe, ele adotou ao olhar tal objeto na casa de Meneses).

Inocentado do crime por artimanha de Pichá, Peto volta ao Recife como herói, que se livrou do seqüestro, e casa-se com Geni, que ele não sabe, é sua prima,filha de Pichá.



GRACILIANO RAMOS

São Bernardo: A busca do sentido da vida

O romance (narrado em 1a pessoa) se inicia com a exposição do desejo da capitalista Paulo Honório (protagonista) de fazer um livro “pela divisão do trabalho”, numa espécie de catarse (purificação do espírito) conta a história de suas “violências miúdas” e mais graves. Tudo o que fez para conseguir ser o proprietário da Fazenda São Bernardo: a forma como envolveu o Luís Padilha (herdeiro da fazenda), as dívidas que este contraiu, as promissórias assinadas por conta de jogo até a perda total da propriedade que passou para Paulo Honório; os subornos na justiça para se apropriar de partes dos terrenos alheios, a forma grosseira de lidar com os trabalhadores e com a esposa Madalena.

Não tendo o domínio da arte de escrever convida algumas pessoas para redigir o romance. O padre Silvestre, o Nogueira, Arquimedes e Azevedo Gondim. Este último era redator de O Cruzeiro. Os colaboradores exageram na língua de Camões e o livro não agrada a Paulo Honório que decide fazê-lo só. Tarefa difícil para quem conhecia apenas de agricultura, pecuária e estatística. Foi, neste momento, que pensou em Madalena. Se estivesse viva escreveria tudo muito rápido mas, agora, ela era apenas lembrança.

O que provocou a necessidade de fazer o livro? Por que o protagonista decidiu refletir sobre sua vida? “A lembrança de Madalena persegue-me. Diligencio afastá-la e caminho em redor da mesa (...) De longe em longe sento-me fatigado e escrevo uma linha. Digo em voz baixa: ‘– Estraguei a minha vida...’” (p. 184). Oprimiu tanto a esposa que ela suicidou-se.

O desejo expresso de dominar sempre foi o que estragou sua vida e a de Madalena, a esposa que não agüentou as pressões do marido. Esse eu que narra emite opiniões duras sobre si e sobre as pessoas com quem conviveu. Sozinho – após a morte da esposa quase todos o abandonam – decide escrever sobre sua vida, atenuar a solidão.

O conflito interior que o leva à retrospectiva sobre suas atitudes, leva-o também a ver-se como um monstro.

“Devo ter coração muído, lacunas no cérebro,
nervos diferentes dos nervos dos outros homens...”


Senta-se à mesa, solitário (Casimiro Lopes e o filho ficaram com ele bem como Rosa e Marciano), a vela quase a extinguir-se e o eu-narrador exausto buscando na atividade de escrever apagar o que fez ou entender (?).

Organizou a fazenda aos poucos. Cotratou homens. Foi duro e tudo se fez. Mandou buscar a velha Margarida que o criou e lhe deu abrigo. Forma de pagar o que a velha fizera por ele.

Paulo Honório conhecera Madalena (loura, olhos azuis, 27 anos) graças a Gondim e a Padilha. Ela morava com uma tia, a Dona Glória. Aproximou-se delas e fez um convite para conhecerem a fazenda. Paulo pensou em um herdeiro e um belo dia decidiu casar (a mulher seria uma propriedade a mais). Casam-se na capela da fazenda.

Madalena era uma mulher culta – professora, – o marido não sabia muito, a não ser dos números. Logo Madalena revelou sua preocupação com os trabalhadores. Exigiu providências do marido. Observou condições de trabalho, salários e instrução dos trabalhadores e filhos desses trabalhadores. O marido se revoltou: “Ora gaitas! berrei. Até a senhora? Meta-se com os romances.” (p. 100) As idéias socialistas da mulher se opunham às idéias capitalistas do marido – eis o conflito que nascia.

O dono da fazenda São Bernardo não admitia qualquer gesto de revolta, comprazia-se em humilhar os trabalhadores. (reflexo de sua vida sofrida? Foi guia de cego, vendeu doces, foi trabalhador do eito, foi criado pela preta Margarida.). Ao ouvir, certo dia, seu empregado Luís Padilha discursando para o mulato Marciano e para Casimiro Lopes sobre direito de trabalhador, revoltou-se: “(...) chamo o delegado de polícia, que isto aqui não é Rússia.” (p. 161)

Promessas com pagamentos para depois e assim a fazenda foi crescendo. O governador visita a fazenda e gosta de tudo – das galinhas Orpington, do algodão, da mamona e pergunta onde ficava a escola. Não havia escola e Paulo Honório pensa: “Trabalhador instruído é coisa perigosa. Metam pessoal letrado na apanha da mamona. Hão de ver a colheita.” (p. 44)

Madalena insiste na idéia da escola. Paulo pensa no governador elogiando o feito. Pensa na amizade com o político. Decide construir a escola em São Bernardo: “De repente supus que a escola poderia trazer a benevolência do governador para certos favores que eu tencionava solicitar.” (p. 44). Padilha fica como o professor dos trabalhadores. Madalena analisou o método de Padilha e condenou tudo. Solicitou material escolar (globos, mapas, artigos necessários) – “nota gasta, despesa supérflua” – pensou o marido: “Seis contos de folhetos, cartões e pedacinhos de tábuas para filhos de trabalhadores. Calculem. Um dinheirama gasto por um homem que aprendeu leitura na cadeia, em carta da ABC, em almanaques, em bíblia.” (p. 107) – Foi assim que o dono da fazenda aprendeu a ler.

Madalena dedicava-se cada vez mais à instrução dos trabalhadores. Procurava ajudar a todos. Presenteava a Rosa, mulher de Marciano, conversava com Padilha. Reclamava com o marido sobre o tratamento dado aos empregados ao que ele revidava enciumado:

“Que diabo tem você com Marciano para estar tão parida por ele?” (p. 110) Acusava a esposa, reclamava por acostumar mal os pobres.

A esposa passa a trabalhar mais com seu Ribeiro, o guarda-livros, homem responsável pelos balanços da fazenda. A tia de Madalena – Dona Glória – vivia conversando com seu Ribeiro e Madalena, fato que desagradava Paulo Honório, pois acreditava atrapalhar o serviço. Reclamações surgem e Madalena se irrita. Devia sua vida e profissão àquela senhora.

Paulo Honório protesta: “(...) Professorinhas de primeiras letras a escola normal fabrica às dúzias. Uma propriedade como São Bernardo era diferente” (p. 115)

A ambição dele estava acima de qualquer sentimento, nada poderia atrapalhar os lucros, o crescimento. Assim, graças à mão de ferro do narrador:

“As casas, a igreja, a estrada, o açude, as pastagens, tudo é novo. O algodoal quase uma légua de comprimento e meia de largura (...) Pensam que isto nasceu assim sem mais nem menos? (p. 122)

Nasce o herdeiro de São Bernardo e a vida prossegue. Madalena não muda. Torna-se cada vez mais sensível à realidade da fazenda.

Chega a revolução. Padre Silvestre, Padilha, João Nogueira discutem sobre as notícias no jornal. O padre condena os políticos, João Nogueira acreditava que o país naufragara. As finanças do estado andavam mal.

A Revolução trouxe mudanças significativas: “o crédito sumia, o câmbio baixava, a mercadoria estrangeira ficava pela hora da morte. Sem falar na atrapalhação da política.” (p. 127), refletia o Nogueira. Padilha e Madalena, no entanto, deliravam: “seria magnífico depois se endireitava tudo.” (p. 128) – Pensem na coletividade. Gondim contesta: “– Era o que vocês queriam. Teremos o comunismo”. Seu Ribeiro teme. Padre Silvestre achava o comunismo uma miséria, “a desorganização social, a fome.”

A raiva de Paulo Honório aumentava, o ciúme crescia a cada instante: “sim senhor! Conluiada com Padilha e tentando afastar os empregados sérios do bom caminho. Sim senhor, comunista! Eu construindo e ela desmanchando. (p. 130)

Padre Silvestre acreditava que a religião seria um freio necessário. Paulo Honório tinha um conceito diferente (e condenava Madalena por ela não se mostrar religiosa):

“Admito Deus, pagador celeste dos meus trabalhadores, mal remunerados cá na terra, e admito o diabo, futuro carrasco do ladrão que me furtou uma vaca de raça. Tenho, portanto, um pouco de religião, embora julgue que, em parte, ela é dispensável num homem. Mas mulher sem religião é horrível. Comunista, materialista. Bonito casamento! Amizade com Padilha, aquele imbecil.” (p. 131)

O marido capitalista cada vez mais ofendido: “Mulher sem religião é capaz de tudo. (131). Os ciúmes aumentam, as acusações. Afasta Padilha da casa. Deixa-o restrito à escola. Tira-lhe o salário por quatro meses para sentir o prazer de vê-lo “magro, com o colarinho sujo e o cabelo crescido.” Xinga-o; humilha-o:

“Tenha paciência. Logo você se desforra. Você é um apóstolo. Continue a escrever os contozinhos sobre os proletários.” (p. 132)

Padilha engole tudo e pede ajuda ao patrão. Solicita que intervenha para que ele consiga uma colocação no fisco estadual. E o proprietário de São Bernardo responde de modo irônico:

“– Impossível, Padilha. Espere o soviete. Você se colocará com facilidade na guarda vermelha.” (p. 133)

Observe que ao mesmo tempo que Graciliano Ramos exibe a questão social (opressão exercida pelo dominador) ele acentua a psicologia do personagem. O retrato de Paulo Honório é-nos passado pelas ações dele e as ações revelam seu mundo interior.

Dois anos de casados. As brigas aumentavam. Paulo Honório xingava a todos, detestava Dona Glória e sentia vontade de matar tia e sobrinha, porém não possuía a prova da infidelidade da esposa. Procura na correspondência de Madalena algum sinal de traição. Madalena chora, entra em crise. Todos os homens eram suspeitos para o marido. Tudo o que ela fazia era suspeito: “– Deixa ver a carta, galinha.”

Paulo Honório é o capitalista sangüinário, desejoso das torturas.
“E se eu soubesse que ela me traía? Ah! (...)
abria-lhe a veia do pescoço, devagar, para o sangue escorrer um dia inteiro.”
(p. 149) (Lembra as torturas na época da ditadura? Observa a época do romance decada de ‘30)

Começou a ouvir pessoas à noite, acordava. Xingava a esposa dizendo tratar-se de amantes. Depois descobre que não passava de ratos. As pancadas do relógio o assustavam. Certo dia encontra uma folha de carta – provavelmente voara e Madalena não vira. Interroga Madalena sobre o resto, tortura-a.

Madalena adoece. Começa a dizer palavras desconexas. Pede ao marido que ajude a todos: Sr. Ribeiro (o guarda-livros), Padilha, Marciano, Dona Glória. Pedia ao marido para esquecer a raiva.

“Três anos de casados Madalena comete suicídio. Fazia exatamente um ano que o ciúme começara.” Madalena deixa uma carta (a carta cuja folha perdida Paulo Honório encontrara) para o marido. Não era para o amante como pensara Paulo Honório. Madalena é enterrada debaixo do mosaico da capela-mor.

Todos que gostavam de Madalena após sua morte decidem deixar a fazenda: Dona Glória, Sr. Ribeiro, Padilha (vai juntar-se aos revolucionários), este quando sai leva bastantes trabalhadores com ele.

Chega a revolução... bandeiras surgem encarnadas por toda parte. Paulo Honório odiava a revolução. Neste ano muito comerciante quebrou, houve falências e concordatas. O proprietário de São Bernardo teve que aceitar liquidações péssimas. Perdeu a avicultura, a pomicultura, a horticultura. As fábricas de tecidos (que adiantavam o pagamento) quebraram e o algodão da fazenda não saía mais. Compra fiado. O dinheiro para investir acaba em seis meses e só houve perdas. Paulo Honório vende o automóvel para fazer pagamentos de promissórias. Não havia mais o que fazer pela propriedade.

Dois anos depois de Madalena morta a casa estava vazia. Todos partiram. Nem os amigos vinham mais para falar de política. Bate a solidão, a amargura e com elas o desejo de escrever:

“Cinquenta anos perdidos, cinqüenta anos gastos sem objetivo a maltratar-me e a maltratar os outros.”
Os anos fizeram de Paulo Honório um ser endurecido, calejado. Angustia-se: “Que estupidez! (...) não é bom vir o diabo e levar tudo?”
(p. 181)

Estoura a revolução e Paulo Honório está à mesa escrevendo. Meia-noite, as janelas fechadas. A casa deserta. A lembrança de Madalena a persegui-lo. Reflete:

“Se fosse possível recomeçarmos... Por que enganar-me? Se fosse possível recomeçarmos, aconteceria exatamente o que aconteceu.” (p. 187)

Paulo Honório reconheceu que contribuiu para a situação de miséria em que se encontravam os trabalhadores. Lamentou, mas sabia que voltar no tempo era fazer tudo igualzinho. Daí buscar na escrita atenuar seu sofrimento, a solidão.

Paulo Honório foi dominador, ativo. Tudo ao seu redor se reduzia à sua voz áspera. Sua linguagem era econômica, direta, grosseira.

Para Luiz Lafetá Paulo Honório simboliza “a modernidade penetrando no sertão brasileiro, é o emblema complexo e contraditório do capitalismo nascente, vai-se apropriando do que vê, um burguês.

Tomou inicialmente posse da fazenda depois tomou posse de Madalena “Amanheci um dia pensando em casar.” Observamos que o casamento é mais uma transação, mais um negócio.

Podemos observar que a estrutura do romance se subordina à ação ou enredo e ao personagem. “Paulo Honório é seus atos ou os atos fazem de Paulo Honório, homem de vontade; determinação, energia. Tudo era calmo antes dele. A roça de seu Ribeiro era calma sem transtornos no tempo do Imperador. Luís Padilha tinha vida modorrenta, preguiçosa. Paulo Honório é que veio modificado as relações daquele universo.
Interessante destacar o que representa os trabalhadores da fazenda (para Paulo Honório), os despossuídos: são quantidades, são força de trabalho, peças da engrenagem, mercadorias. O sentimento de propriedade é uma constante na vida no narrador (egoísta e brutal): a fazenda, o rebanho, as plantações de mamona e algodão, o capital, Madalena.

Paulo Honório foi incapaz de sentir Madalena, de enxergar-lhe a grandeza de espírito, as reais intenções da mulher e professora. A relação de choques entre ambos seria inevitável, eis um novo núcleo narrativo, mas tudo reflete o motivo central da história: “Ela também é objeto posuído” e ela foge ao seu controle, ao controle do dominador.

O mundo se desgoverna para Paulo Honório com a morte de Madalena. Tenta, ao construir o texto encontrar o sentido da vida, o fio condutor. A narrativa do presente contrasta com a narrativa do passado. Paulo Honório não era mais o símbolo do dominador, mas deixa-se levar, está desnorteado: “E os meus passos me levavam para os quartos, como se procurassem alguém”. (p. 179). O tempo é outro. O tempo sem Madalena, o tempo sem os empregados, o tempo da revolução e da crise.

A narrativa do passado e a do presente juntas oferecem a visão do romance, o romance que começou com a divisão do trabalho.

Outro contraste a se observar ocorre no plano da linguagem. Antes da morte de Madalena a linguagem do Narrador é grosseira, seca (TEMPO DO ENUNCIADO), depois da morte, assume um tom mais melancólico (TEMPO DA ENUNCIAÇÃO). O mesmo se observa com as ações. “O ritmo rápido da narrativa” é substituído pelos compassos mais lentos, pela reflexão, pelo desejo de entender a vida quando depois da morte da esposa:

“Aqui sentado à mesa da sala de jantar, fumando cachimbo e bebendo café, suspendo às vezes o trabalho moroso, olho a folhagem das laranjeiras que a noite enegrece, digo a mim mesmo que esta pena é um objeto pesado. Não estou acostumado a pensar, levanto-me, chego à janela que deita para a horta.”

Quando a vida de Paulo Honório parece perder todo o sentido a narrativa começa. Eis um novo percurso, um novo rumo à procura de valores autênticos, as veredas trilhadas por um personagem problemático. Antes Paulo Honório apareceu inteiro e dominador. Depois fragmentado, perdido, sem vontade de agir – angústia de quem começou a se conhecer, de quem percorreu o labirinto da memória e não achou a saída. Para Luís Lafetá esta parte da narrativa tinge-se de Lirismo e se afasta da “objetividade épica”.

No tempo do enunciado, a objetividade do narrador é visível. No tempo da enunciação as marcas da subjetividade se fazem notar bem como o fluxo de consciência.

As dúvidas do narrador quanto à traição de Madalena – o ciúme que lhe rouba a certeza – também abala a estrutura do narrador onisciente. Não podemos deixar de perceber, no entanto, os dois planos de representação a justificar tais fatos. O narrador parece – muitas vezes – perder o domínio sobre o tempo, sobre a precisão da hora, fato que se justifica pela inquietação em que se encontrava o narrador no instante de escrever. É neste ponto que irrompe a escuridão do mundo interior que muitas vezes se anuncia.

Através do pio agourento das corujas, da imobilidade de um “herói derrotado” pelo seu mundo interior, pela solidão.

É importante destacarmos ainda o estilo Graciliano Ramos.

– a construção de um texto enxuto, conciso, claro (A preocupação com o fazer literário – METALINGUAGEM).
– o uso de uma sintaxe clássica, a economia quanto aos adjetivos.
– o elemento regional ganha em universalidade.
– predomínio de um realismo crítico, consciente – o herói é problemático.


ESTRELA DA MANHÃ – (Publicação – 1936)

“Modelo de uma poesia lírica a que se mistura IRONIA e mesmo o sarcasmo. A poesia evolui num certo sentido humorístico, num certo sensualismo (Canção das Duas Índias “Entre estas Índias de leste / E as Índias ocidentais / Meu Deus que distância enorme / (...) Sirtes sereias medéias / Púbis a não poder mais...” Balada das Três Mulheres do Sabonete Araxá, as mulheres que hipnotizam o poeta, as mulatas cor da lua, as celestes africanas, “as prostitutas, as declamadoras, as acrobaras ou as Três Marias?), um erotismo que parece não se concretizar, pois as mulheres, as duas índias são comparadas às inacessíveis praias – o humor amargo” à maneira dos ingleses Oscar Wilde e Lord Byron”.

O eu-poético começa procurando a estela da manhã “Eu quero a estrela da manhã” – O que seria afinal essa estrela? Abre-se aqui um campo de interpretações (texto aberto) – e termina encontrando apenas a estrela Vésper (o ocaso, o fim da tarde será o fim da vida? “Vésper em cuja ardência não havia a menor parcela de sensualidade”. Quer a estrela-d’alva, a rainha do mar, quer apenas ser feliz e poder descansar. O eu-poético se sente só e sua busca parece resultar em nada” (...) gritava o seu nome três vezes / Dois grandes botões de rosa murcharam / e o meu anjo da guarda quedou-se de mãos postas no desejo insatisfeito de Deus.” A saída parece nunca existir, fato que se repete em Conto Cruel. O pai que sofria de UREMIA toma injeção de sedol, mas não consegue dormir e “Jesus-Cristinho” nem se incomoda com os apelos.

A amargura do eu-poético, a sua solidão deixa-se notar no poema Marinheiro Triste. Compara sua vida com a do marinheiro. O poeta é uma pessoa amargurada, de uma amargura “nobre e funda”, uma tristeza consciente (assim como a do poeta da “vida inteira que poderia ter sido e que não foi”.) O destino do marinheiro, seu lugar seguro é o navio (“o feroz casco sujo amarrado ao cais” para onde volta mesmo sem saber se será feliz (deveria voltar bêbado?). Ao marinheiro restará no mínimo) o horizonte imenso”, mas ao poeta nada restará. Talvez a morte. Morte que contempla em Momento num café ao olhar um esquife que passava.

No percurso da busca, o eu-poético faz reflexões sobre o beco. O beco que aprendeu a cantar num dístico (poema de dois versos).

A temática social (pouco freqüente nos textos do poeta) aparece também na prosa poética Tragédia brasileira e em Rondós dos Cavalinhos. Veja que o crime ou a tragédia brasileira – o assassinato de Maria Elvira – ocorreu na rua da Constituição (será que poderemos remeter aos crimes, assasinatos na época da ditadura?). Maria representa a gente do povo e Misael trabalha para o governo – Ministério da Fazenda. Metaforicamente ele é o Governo e ela é a prostituta (Bandeira tem admiração especial pelas prostituídas – por ser uma excluída?). Para José de Nicola, Misael, num gesto populista, comprou Maria Elvira (= povo) com algumas coisas (pseudo paternalismo), o mesmo que fez Getúlio Vargas antes de preparar o golpe de Estado (governo populista), comprou o povo a fim de garantir-se no poder. Vale destacar que quando o crime ocorreu, Maria Elvira morava na Rua da Constituição e Misael já era um sujeito, “privado de sentimentos e inteligência”. Na Constituição estariam algumas contradições?

Como esse poema foi escrito na década de ‘30 – a era Vargas – talvez a Tragédia Brasileira tenha uma ligação com o momento político que vivíamos.

Vale destacar que Bandeira mexeu com a estrutura da tragédia à maneira dos gregos pois os personagns pertencem a uma classe que não é dominante, ou seja, é gente do povo.

Já em Rondó dos Cavalinhos o poeta se mostra mais irônico, sarcástico ao falar (indiretamente) do Brasil político, um Brasil distante do elemento sensível: “O Brasil politicando, / Nossa! A poesia morrendo...”

A metrificação curta, o ritmo leve aparecem principalmente em Cantiga (pentassílabos – redondilha menor). O ritmo leve das brincadeiras infantis é exibo também com Boca de Forno (intertexto) e Trem de Ferro. Neste último, podemos perceber a língua errada do povo’, ‘língua certa do povo’, ou seja, o jeito de o brasileiro falar, como falamos, como somos. O recurso da polifonia a permitir a voz do outro no texto: “Oô... / Quando me prendero / no canaviá / Cada pé de cana / Era um oficiá / Oô ... / menina bonita / Do vestido verde / me dá tua boca / Pra matá minha sede / Oô ... / Vou mimbora voi mimbora / não gosto daqui / nasci no sertão / sou de Ouricuri / Oô ...”

Além dos temas desenvovidos por Bandeira (a família, a morte, a infância no Recife, o Rio Capibaribe) podemos destacar a preocupação do poeta com os outros: “os mendigos, os meninos carvoeiros, as prostitutas, os carregadores de feira-livre, as ‘pálidas crianças, tristes, asiladas, os meninos sem amor de mãe que viviam de caridade, em vestes tristes como mortalha. As Irenes pretas, os Joões gostosos, as flores muchas da vida a cobrar do eu-poético esperanças. Flores Murchas é um poema que funciona como um canto de solidariedade ao povo, um povo que também precisa da Estrela da Manhã.

Bandeira é ainda o poeta das lembranças: a infância, o Recife, Juiz de Fora e suas manhãs, suas “jabuticabeiras cansada de doçura, o cineminha namoriqueiro, o parque senhorial, os bondes dando sem pressa voltas vadias, o primeiro sorriso da doce província de Minas Gerais. O poeta em Declaração de Amor lembra o poeta Mauro Mota na busca do tempo na Farmácia, um tempo “tão de dentro deste Brasil”.

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Moisés Neto

Professor com pós-graduação em Literatura, escritor, membro da diretoria do SATED (Sindicato dos artistas e técnicos em espetáculos de diversão em Pernambuco).


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