João Cabral de Melo Neto: 60 anos de poesia

                                        por Moisés Neto


 Nascido em Recife, João Cabral (1920-1999) descende de senhores de engenho, onde passou a infância e recebeu grande influência. No Recife, jogou pelo time Santa Cruz. É primo de Gilberto Freyre e de Manuel Bandeira. Foi para o Rio de Janeiro em 1942 e em 45 ingressou na carreira diplomática.
 
Seu primeiro livro  Pedra do Sono foi publicado em Recife e é composto por poemas curtos em versos regulares e brancos. “Pedra” simboliza sua obsessão pela ordem e clareza. “Sono” é conotação para a poesia que o escritor quer transformar em objeto numa linguagem despretensiosa, coloquial, irônica. Há neste lançamento influência das vanguardas (surrealismo, cubismo, semana de 22,etc.), como detectamos no poema “Noturno”: “o mar soprava sinos/ os sinos secavam as flores/ as flores eram cabeças de santos/ minha memória cheia de palavras/ meus pensamentos procurando fantasmas/ meus pesadelos atrasados de muitas noites”.
 
Em 45, publica O Engenheiro, poemas (“máquina de comover”) com projeto geométrico de construção, rigor. Dedica-o a Drummond e faz referências a Miró, Picasso, Mondrian. Além de metapoesia, há limpidez na linguagem, preocupação com a disposição gráfica das estrofes.
 
Em 47, surge Psicologia da Composição (com “Fábula de Anfion” e “Antiode”). A “fábula” é poema narrativo onde o anti-herói livra-se da emoção. Anfion construiu ao som de sua lira, a muralha de Tebas.
 
Em 1950: O Cão sem Plumas, escrito em Barcelona, denuncia a realidade nordestina também no poema “O Rio”(em 1ª pessoa,com técnica dos  romanceiros ibéricos) onde o eu-lírico  é o próprio rio. Engenhos, usinas, trem, afluentes, misturam-se na viagem do sertão ao mar.
 
Morte e Vida Severina é de 1956: o narrador em primeira pessoa nos conta (em forma de auto de  natal-pernambucano) sua trajetória de desilusão e desgraça do sertão pernambucano até o Recife. Sua condição severina (severa, vulgar) cujo único consolo é o nascimento de uma criança (que presencia no final do poema).
 
Em Paisagem com Figuras (56), compara o norte da Espanha  com a paisagem nordestina.
 
Quaderna (60) é antilírico e composto por quartetos rimados.
 
Dois Parlamentos (61) parodia a gratuidade e a recorrência da fala  dos políticos institucionais, distanciados da realidade (“Congresso no Polígono das Secas” e "Festa na Casa Grande”).
 
Em Serial (“Terceira Feira”), de 1961, encontramos poemas compostos em  série, ultrapassando o lirismo e a musicalidade. Como característica: busca da forma, e lucidez severa da composição.
 
Educação pela Pedra (66) é  coletânea  que expõe a “depuração”  atingida pelo poeta num processo rigoroso e sistemático, comparável à resistência/ consistência da pedra.
 
Museu de Tudo (76) é composto por poemas que diferem da simetria habitual do autor (por isso seu rigor eliminou tais poemas dos livros anteriores).
 
Escola das Facas (80) “poemas pernambucanos”, Cabral retoma a  preferência pela simetria. Há notas memorialistas e a 1ª pessoa (sem despersonalização, eis a diferença).
 
Em 82, publica Poesia Crítica, cujo tema é a criação poética. É o artista  a refletir sobre a própria arte.
 
Em 84 surge O Auto do Frade, um poema para vozes. Como Morte e Vida Severina, este também é para ser lido em voz alta. O tema é Frei Caneca, mentor da Confederação do Equador (movimento republicano em Pernambuco), executado em 1825, por ordem de Pedro I. O poema retoma o último dia do líder carmelita. O povo o vê caminhando para a morte:
 
“-Ei-lo que vem descendo a escada, degrau a degrau.Como vem calmo.
 
-Crê no mundo,e quis conserta-lo.
 
-E ainda crê, já condenado?
 
-Sabe que não o consertará.
 
-Mas que virão para imita-lo.”

 
Em 85  e 87, respectivamente são publicados Agrestes e Crime na Calle Relator.
 
 
Ficou o senso de medida e a expressão sem excessos ou derramamentos, a despoetização do poema que, longe da retórica, concentra a emoção dando à palavra espessura, concretude. Mais qualidade do que quantidade. Cada uma com o máximo de conotação possível. Emoção passando pelo crivo da precisão, humanitariamente: a presença do humor numa “concepção objectualista”. Um verso substantivo e despojado, que nos deu uma nova perspectiva do discurso lírico.
 
Até hoje, a nos seguir, está o cão sem plumas(=pêlos) arrastando ainda detritos das casas grandes & senzalas. Prosaico, lírico, polirrítmico, severo e pícaro. Violentando o horizonte nordestino com sua forma dura. A palo seco: sem guitarra, sem mais nada. Só a lâmina da voz, sem tempero ou ajuda. Com sua chama nua sobre o fio de cobre. Ferro contra pedra. Ferro contra ferro.
 
O rio como um cão vivo.
 
“O que vive não entorpece/ o que vive fere(...)viver é ir entre o que vive...”
 
Ariano disse que João Cabral é parte da formação e manutenção da identidade nacional. Haroldo de Campos o considera um dos maiores poetas do Brasil. A Espanha e os EUA já o reverenciaram. Cabral resmunga: “Me considero um marginal na poesia luso-brasileira. Como foram Sousândrade e Augusto dos Anjos.”  Nosso poeta resgatou o homem,como o Barroco resgatou Deus. Numa literatura que busca o “engajamento”.
 
Em 1968, assumiu a cadeira deixada por Assis Chateaubriand na Academia Brasileira de Letras. Em 53, acusado de comunista, passou algum tempo afastado da carreira diplomática.
 
Cabral negou a experiência de 22. Augusto de Campos disse que ele não tinha “antecedentes”( só “conseqüentes”).
 
“A poesia concreta não depende de mim”, sentenciou Cabral do alto dos seus oito livros de poemas e dois autos dramáticos. Em prosa, lançou estudo sobre Juan Miró.
 
“Plantas franzinas em ambiente de rapina”, foi como descreveu os camponeses da zona da mata pernambucana.
 
O nordestino é marcado pela paisagem.

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Moisés Neto

Professor com pós-graduação em Literatura, escritor, membro da diretoria do SATED (Sindicato dos artistas e técnicos em espetáculos de diversão em Pernambuco).


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