O olhar delicado de Regina Vilaça entre Julhos e Agostos.

                                        por Moisés Neto.

Conheci Regina na faculdade ,na década de 80,e nosso amor pela literatura nos uniu e manteve essa chama acesa através de mais de dez anos.Gostamos de viajar e de escrever.Somos professores.

Maria Regina de Fraga Vilaça nasceu no mesmo lugar que eu: na Conde da Boa Vista,principal avenida do Recife ,em 22 de março de 56, sob o signo de Áries,como eu. Cursou Filosofia na UFPE.Em 77, foi para São Paulo e integrou a geração dos poetas que vendiam seus livros mimeografados.Participou do grupo teatral de Otto Prado.Cursou Letras na USP e em 80 foi para a Europa. De 81 a 88 lecionou inglês em Angola, na Líbia e no Sudão. Voltou para o Recife em 88 e concluiu o curso de Letras.Em 92 volta à Líbia e em 94 fixa residência na Bélgica,onde leciona.

“Entre Julhos e Agostos” é o nome do seu romance publicado em Pernambuco, pela editora Bagaço(1998), dedicado ao seu marido e seus dois filhos.

Regina tem delicadeza até na voz. Tem jeito de perfume francês: pequenas gotas de transcendência a envolvem.

Quanto ao romance, trata-se de uma narrativa estilhaçada por uma polifonia estranhamente harmônica.
Júlio,Augusto e Diana dividem a vez de narrar. Ela ,uma garota que faz teatro (uma peça infantil, e ensaia “Calabar” de Chico Buarque e Ruy Guerra sob a direção de Fernando Peixoto) e trabalha num hotel em São Paulo(o Excelsior) .Júlio é um professor que contrai um vírus conhecido na época como a praga gay. Augusto é um aventureiro que divide o apartamento com os dois, vai trabalhar na Nigéria e engravida Diana durante as férias.

São personagens simples,seres humanos esmagados na suja São Paulo,onde o anonimato às vezes é uma bênção.

A autora conduz seu romance com rédeas curtas,ao modo de Oswald de Andrade no que se refere à linguagem telegráfica que deixa quase sem fôlego o leitor mais sentimental.

“Júlio,Augusto, Agosto, três horas da madrugada, de nada, morta madrugada, de ilusões.
Sinto doer o corpo. O Utopia gostoso e quentinho- macarronada para três- o garçom sorriu,anotou(...)
-Quem paga? Eu não tenho um puto”


Assim começa a história deste “triângulo escaleno” (o de lados desiguais), os dois homossexuais e a garota interrompida.

O caleidoscópio vai logo expondo bares e lugares da velha Sampa no fim dos desbundados anos 70 .
Há vários tipos de letras compondo o livro, o que imediatamente conduz o leitor a “compartimentos”, escaninhos labirínticos numa trama onde os diálogos são entrecortados por discursos interiores.

Entre o lirismo e a sensualidade brincalhona,a esperança vai se equilibrando trôpega,indecisa,delirante: “Vazia escuridão.Ouço águas.Não quero dormir mais,não quero. È preciso vigiar,esperar acordado,neste quarto vazio,nesta luz fraca(...)suor que não acaba,águas,meus olhos pesam,tenho que esperar,hão de me conceber,olhos abertos,espero(...)excito-me,acaricio o órgão tenso,desisto,volto-me,descubro a ponta de uma estrela pelas janela entreaberta e não consigo ver o céu”.

São Paulo aparece como um “estegossauro” claricelispectoreano que engoliu o verde. Verde, que só será revelado novamente num relâmpago que ilumina os olhos de uma estátua do caçador de esmeraldas ,numa rua.

Pressentimos um pulsar intermitente. Entrelinhas compulsivas. Efervescência de bilhetes e bebedeiras. Somos espiões convidados pelos personagens que viveram a farra do fim da ditadura militar, o renascer da democracia,o processo de anistia, a abertura política do Brasil.Cacos dos anos de chumbo brasileiros.”Tudo policromático”

É uma viagem sacudida.

“Cortinas vermelhas semi-abertas por trás das samambaias derramadas”: as imagens,os filmes da época (“Se segura malandro”, “Amacord”, “1900” -em duas partes),as músicas (Bee Gees, Pink Floyd, Rick Wakeman),despertam saudades em quem viveu a virada para os anos 80.

O escritor Paulo Caldas refere-se ao livro de Regina deste modo: “Desprezei as minúcias literárias e sofisticações da mesma ordem e concentrei as atenções na concepção do tema, no desenvolvimento da trama e no envolvimento do leitor com o texto(...) o ritmo(...)cortes ágeis(...) a sensação de medo ante o desconhecido(...)toques de sensualidade ,longe dos apelos eróticos”.

Concordo com Paulo e acrescento que Regina teceu sua narrativa como uma colcha de retalhos de emoções ,um patchwork pós-moderno: “música impregnando os poros doídos da paixão”.

É a batalha cotidiana de quem está começando a lutar pela vida e tentando definir seu espaço na sociedade, no mundo: “beijavam-se,Deus não podia ser contra o Amor,tudo é tão natural(...) na penumbra trêmula...we are young and free”.

“-Olha,eu tenho uma boa notícia.Vou dar aulas de inglês e francês num curso novo que abriu”, diz Júlio.Augusto estava indo para a Nigéria com um contrato de um ano nas mãos.

Taco,colchões no chão,almofadas,samambaias,fogão de duas bocas,café solúvel: “Júlio dormia nu com a perna sobre Augusto”. Diana “maternalmente beija-os embriagada de vinho e ilusões”. É como se a realidade fosse só um filme ao qual “assistimos sentados(...)de vez em quando emocionados,mas sempre pensando que no fim as luzes vão acender” .

Fala-se de revolução, a geração 70 no Brasil ansiava por isso. “A Revolução individual não muda nada”. Divididos entre o positivismo e o esoterismo (“é preciso controlar o gozo dos sentidos.Sexo é ilusão e assumir o feminino e o masculino é iludir-se duplamente.Gozar a vida sexual é como sugar o próprio sangue”) os personagens vagam e vão parar tanto dentro da burocracia quanto nos banquetes do movimento Hare Krsna ou em terreiros de macumba em Salvador. E saem pela Avenida Paulista, se embriagam no Bexiga, suam no palco e num sexo abafado num Brasil agônico: “Mas que esperança? A Globo vive distribuindo fantasia, `Santos´ faz milagres em prêmios todos os domingos”.

“Diana entre mim e Augusto na cama desforrada(...)o seu perfume de alfazema,leve e pesado”: É como se fosse a Diana do pastoril profano- entre o cordões azul e encarnado.

Há momentos de “viagens”,como na página 70,quando Júlio encontra um “krsna” jovem, viril e feminino de “nádegas gordas e alvas,cabelos em caracóis,lábios grossos e sensuais,unhas pintadas,no meio das águas,sorrindo e convidando-o(...)mas Oxum emergia medonha,morta de ciúmes,bela e fria,afastando-o”.

Sempre o “triângulo escaleno” :dois juntos e um partindo.~Lados desiguais de um mesmo desenho.
Mesmo lançando mão,às vezes de uma linguagem “chula” ,Regina é refinada ao conduzir o leitor num passeio dantesco ,onde analisa as instituições sociais como família,igreja e política.

É sexo e amizade entre edifícios modernos,mansões neomouras, neocoloniais em decadência: “São Paulo não quer saber quem eu sou,nem o que faço(...)não nos cobra nada. Só o aluguel,o condomínio,o transporte,os sanduíches com coca-cola,cafezinhos corridos e motel”.

Há humor nas entrelinhas: “Será que existe o deus do café? Se existisse seria muito venerado aqui,assim como o deus da oportunidade”.

São capítulos-pílulas,como este:

“-Telegrama?!
-Chega no carnaval.
-Mas ele vinha antes.
-Passa pela Alemanha primeiro.”


E discursos radicais: “Abre as pernas, Brasil, quem serão os próximos a te foder?” ,numa referência aos militares entreguistas. É o carnaval em São Paulo: a escola de samba “Vai-vai saindo(...) e a maioria dos paulistas dançando sentados”.

As letras de Regina são como o cheiro do café misturando-se frustrado ao sabonete Alma de Flores,como os meses de julho e agosto ,quando ela vem ao Brasil dividir seu amor conosco.Ela fala da dor e do vazio,de amigos que se vão para nunca mais.Tenta compreender a solidão e assim compôs este romance como uma pintura de estranhas manchas roxas pontuando a vida e a morte em aleluia profunda e magnética.

“Não chore mais ,Diana”, diz Júlio: precisamos de esperanças, “esperanças meu Deus de minha infância,Deus que me ensinaram a amar e a temer,é esse Deus onipotente e misericordioso que desejo agora,eu quero acreditar em milagres(...)queria que não tivesse chovido tanto.Meus olhos saltam a janela e adivinham a folhas novas,verde-claras,e descobrem as minúsculas flores brancas mal desabrochadas,e imaginam o cor-de-rosa”

É uma última carta,escrita num retiro espiritual de convento distante. Quanto ao filho de Diana e Augusto, Julio, que assumiu a criança como fruto do triângulo, que ele acha perfeito,diz: “Ensine-o a dançar.”

Sim, Regina.

Ensine-os a dançar.

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Moisés Neto

Professor com pós-graduação em Literatura, escritor, membro da diretoria do SATED (Sindicato dos artistas e técnicos em espetáculos de diversão em Pernambuco).


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