Memórias do Cárcere

Graciliano Ramos escreve sobre sua prisão na Era Vargas

                                        por Moisés Neto.

A obra do alagoano Graciliano Ramos (1892-1953) divide-se assim:

Romance:Caetés(33),São Bernardo(34),Angústia(36),Vidas Secas(38).
Conto :Insônia(47).
Obra Memorialista: Infância(45),Memórias do Cárcere(53),Viagem(54),Linhas tortas(62)Viventes das Alagoas(Quadros e costumes do Nordeste,1962.
Literatura infantil: História de Alexandre(44),Dois Dedos(45),Histórias Incompletas(46).

Realismo crítico onde o herói não aceita o mundo,nem os outros,nem a si mesmo.Não há predomínio do Regionalismo,da paisagem,que só interessa quando interage com o psicológico,e mesmo assim tudo passando pelo crivo da economia vocabular e correção gramatical. Ao contrário de Jorge Amado,não apelou para o populismo.

Eis um resumo feito por Moisés Neto,em forma dramática,do texto Memórias do Cárcere:

“Meu nome é Graciliano Ramos

Fui prefeito e secretário da educação ,em Alagoas.

Eu sou apenas um escritor,para muitos.

Minha mulher,Heloísa,acha que eu tenho uma amante e costuma dizer que eu só penso em mim, e devia pensar mais nos meus filhos.

Eu já havia publicado meu primeiro romance `Caetés´ e escrito o segundo, `Angústia´,quando fui preso como comunista.

Vieram avisar-me para fugir, porque a pressão era muita.

Fugir para onde?Viver escondido nas dunas da praia?Deixar a barba crescer?

Fui preso.Conheci muita gente no cárcere.Primeiro numa colônia penal,a seguir no porão de um navio.Um lugar sufocante,cheio de gente.Um prisioneiro ao ser arrastado para fora,gritou: `Companheiros vão separar-nos.Se nunca mais nos virmos,ficam vocês sabendo o lugar da minha morte!´

Já se viram numa situação semelhante?

Lá estava o que a burguesia sempre deu ao proletariado:fezes,urina e comida ruim.

Um dia, acordei e vi homens desesperados,e, mesmo assim,masturbando-se.

Perguntei porque alguns usavam cruzes.Disseram que quando a revolução triunfasse,os ateus `de todos os credos´seriam mortos.

Havia de tudo lá,até mulheres.Uma delas,chamada Maria Joana foi detida com uma metralhadora na mão.Inocentes,que cumpriam ordens em nome da revolução.Presos e torturados porque queriam distribuição de terras e melhores condições de vida para os trabalhadores.

Restos de comida pelos cantos,caindo sobre mim! Pensam que estão num chiqueiro?

Porcos!

O `beato´que me amaldiçoou ,rezava.

`Seu Ramos,tem alguém lhe procurando no convés´.Quem seria?

Era um bispo conhecido meu.Trouxera-me roupas e notícias da minha família.Disse-me que eu seria solto logo,logo.

Não acreditei no que aquele bispo dizia.Eu não acreditava naquilo.

A luta contra o imperialismo e o latifúndio,sempre fez muitas vítimas.

Um dia comprei uma garrafa de cachaça:foi uma festa naquele porão imundo.Teve um que começou a cantar e todos acompanhavam batendo palmas,utilizando objetos como percussão.Era ao mesmo tempo fascinante e assustador.

Chegamos ao Rio de Janeiro:` O diretor da Instrução pública do Estado de alagoas.Graciliano Ramos:funcionário público´, por isso ganhei uma `acomodação´melhor.

Religião? Nenhuma.O funcionário não quis registrar isso.

Os prisioneiros nos receberam cantando o hino nacional e gritaram:´viva os nossos companheiros revolucionários do Norte!´

Que revolução?

Lá estavam : médicos,professores,militares,engenheiros.Presos por motivos políticos,em sua maior parte. Porque lutaram por um país melhor

Capitão Mota era poeta.Foi um dos que conheci lá.

O pessoal inventou uma tal de `Rádio Libertadora´,que transmitia direto da `Praça Vermelha´:um prisioneiro imitando a voz de locutor de rádio.Sonhavam com um governo popular que combatesse o fascismo de Vargas.Ele havia decretado estado de guerra´no Brasil.

Praia maravilhosa,cheia de balas mil.Vermelha e majestosa,sentinela do Brasil!(cantavam as mulheres,na prisão ao lado da nossa,parodiando a música `Cidade Maravilhosa´).

A revolução! Gritava alguém.Não escutam o barulho das metralhadoras?

Muitos enlouqueciam naquela tortura.A `transferência´,às vezes ,era um artifício para encobrir uma possível execução.

Nas celas havia aulas de matemática,inglês,política,história e muito mais.Um italiano traçava as bases para a tomada do poder.

Heloísa,minha esposa,visitou-me.

Eu ali,indefeso.

José Olympio aceitou publicar meu romance (sem correções) e o Capitão Mota entregou um conto meu na redação de uma revista ,que o publicou.

Na minha cela ficou um certo capitão Pompeu,que por ironia ameaçara-me de fuzilamento na Revolução de 30,em Alagoas.Que ironia.

A `rádio revolucionária´anunciava: Getúlio assinou contrato com os Estados Unidos para pagamento da dívida externa.

Na cela ao lado estava Olga,esposa de Luis Carlos Prestes,grávida.Getúlio a entregaria para a Alemanha nazista.Mentiram dizendo para as companheiras que ela estava apenas sendo transferida.

A revolução tem que ser universal! Devemos ser instrumentos dela,gritavam.Coragem! O ódio dos fascistas nada significa para nós,revolucionários.



Eu tomava muito café.



Os soldados mantinham na prisão,hábitos militares.Sempre querendo controlar a situação.Fascistas!

E ainda diziam que eu tinha alma de usineiro!

Fiquei doente,colocaram-me na enfermaria.

Trouxeram-me um advogado: doutor Sobral,o mesmo de Prestes.

Mandei-o para o inferno.

Heloísa insistiu.

Terminei aceitando que ele fizesse a minha defesa,embora não houvesse acusação.

Nunca me disseram o motivo da minha prisão!

Houve festa no hospital,comemorando o lançamento do meu livro.Ridículo.

Fui transferido depois para Ilha Grande.

Uma pessoa inteligente nunca se aperta. ,disse-me um sargento.Aconselhou-me também a esconder meus escritos e um resto de dinheiro que eu guardava.

Rasparam meus cabelos.

Reencontrei muitos companheiros do cárcere anterior.

Fui colocado entre ladrões.

Éramos tratados a tapas e pontapés.

Aqui não há nenhum direito.Vocês vieram aqui para morrer!Estão ouvindo? Morrer!

Restavam,para alguns, a masturbação e a sodomia.

Minha úlcera voltou a incomodar-me.

Uma operação ali seria suicídio.

Um companheiro chamado Gaúcho,ladrão muito decente,pediu-me para colocar o nome dele nestas minhas `memórias´.Muitos pediam isso,e iam trazendo informações.

Gaúcho roubou papel e tinta no escritório,para mim.Pegou solitária por isso.

Um dos presos transformou o cabo de uma colher em faca,esfregando-o contra as pedras.Matou outro preso que trabalhava como guarda.

Eram assim os dias.

Sempre li sobre a revolução,desde pequeno no armazém do meu pai.Pelo menos era isso que diziam sobre mim.

3353.Era esse o meu número.

Um dia o chefe do presídio pediu-me para escrever um discurso para o aniversário do diretor,em nome da polícia.

Eu poderia escrever isso?

Em troca ele me daria papel e tinta para meus `escritos´.

Ensinei como ele mesmo devia escrevê-lo,na sua simplicidade.

Acostumados com a miséria,alguns presos resistiam bem e diziam que ao sair dali,iam se juntar à guerrilha para matar soldados.Desprezavam o trabalho intelectual e diziam que eu não agüentaria, por muito tempo, aquelas condições de vida.

Comprei de Gaúcho uma cama no alojamento .

Cinco mil réis.

Os camaradas disseram que eu devia ter consultado o coletivo.Gritaram que eu vivia e iria morrer como um burguês!

Ilha Grande! Que assunto magnífico.Hoje tão distante.Não foi fácil sair de lá com meus escritos.Mas,eu consegui”

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Moisés Neto

Professor com pós-graduação em Literatura, escritor, membro da diretoria do SATED (Sindicato dos artistas e técnicos em espetáculos de diversão em Pernambuco).


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