Sentimento do mundo : a guerra de Drummond

                                        por Moisés Neto.

“Esse incessante morrer/que nos teus versos encontro/é tua vida,poeta,/e por ele/te comunicas com o mundo em que te esvais.//Debruço-me em teus poemas/e nele percebo ilhas/em que nem tu nem nós habitamos/(ou jamais habitaremos)/e nessas ilhas me banho/num sol que não é dos trópicos,/numa água que não é das fontes/mas que ambos refletem a imagem/de um mundo amoroso e patético.//Tua violenta ternura,tua infinita polícia,/tua trágica existência/no entanto sem nenhum sulco/exterior-salvo tuas rugas,/tua gravidade simples,/a acidez e o carinho simples/que desbordam em teus retratos,/que capturo em teus poemas,/são razões por que te amamos/e por que nos fazes sofrer(...)Não é o canto da andorinha,debruçada nos telhados da Lapa,/anunciando que tua vida passou à toa,à toa/Não é o médico mandando exclusivamente tocar um tango argentino,/diante da escavação no pulmão esquerdo e do pulmão direito infiltrado(...)Não são os mortos do Recife dormindo profundamente na noite(...)és tu mesmo,é tua poesia,(...)é o fenômeno poético,de que te constituíste o misterioso portador”.

Assim expressou-se Drummomd quando Manuel Bandeira completou 50 anos (Ode no Cinqüentenário do poeta Brasileiro-poema do livro SENTIMENTO DO MUNDO). O ano era 1940, marcado pela segunda guerra mundial.

O novo livro de Drummond trazia a necessidade de darmo-nos as mãos e sermos no futuro uma lembrança,como um retrato na parede, porque o amor resultou inútil e olhos não choram. Porque chegara um tempo em que não adiantava morrer. A vida ? Uma ordem. Vida apenas, sem mistificação.

Drummond tinha a História como perspectiva,e dizia-se poeta de “ritmos elementares”. Porém sua obra é uma espécie de suporte pra o viver, o sobreviver e o morrer. Onde o Bem, o Belo, a Forma,a Estrutura,a Verdade,a Realidade,o Indivíduo, as Pessoas,a Sociedade,o Canto,a Arte,o Artifício,o Menos e o Mais,o Sim e o Não, giram em alegorias no cotidiano do brasileiro simples.

O poeta de Itabira (MG) descobriu também que o sentido da vida é o seu sem-sentido onde tudo se comunica: o real e o imaginário de todas as épocas se misturam.

Assuntos,motivos,temas,tópicos que até então estavam banidos da poética aparecem na poesia dele numa espécie de novo “viva o dia”(carpe diem),como frisou Antônio Houaiss.

Drummond é mestre da língua.Sua invenção da modernidade é uma postura que se faz necessária,é pois um projeto de vida ou de carreira.Uma busca incessante,onde Linguagem e Homem reinauguram-se.

Sua busca da simplicidade,oralidade,é característica marcante,particularizante.

Suas utopias,sonhos,protestos,indagações,enlaces,desenlaces,fazem dele um “corajoso desor-ganizador”. Ele se escreve. Ele acusa o limite,não apenas entre o bem e o mal (que não existe,é apenas um contraste do bem).

Sua obra ”que não foi construída segundo um projeto,a partir de intenções e fôrmas e/ou formas externas- por exemplo a de `ser´ poeta,a de fazer um soneto,uma sextilha ou um poema de vanguarda,sobre este ou aquele tema,segundo esta ou aquela técnica”.

“O amor truncado,que não chega a ser amor,mas que perdido se revela amor que podia ter sido”.

O humor dessa vida que continuará nos outros,ou em “algo que talvez nem seja o Outro,mesmo que não valha a pena:continuará”: “Onde o diabo joga dama com o destino”.

“Debruça-se o autor sobre o próprio texto à medida que o elabora,inquirindo-lhe do cabimento,da legitimidade,da propriedade das palavras.Uma atitude metalingüística.É o cotidiano repetido num singular irrepetido.A técnica machadiana:espíritos afins,em determinadas condições histórico-sociais,são levados ao uso de técnicas de expressão afins”,ressaltou o mestre Houaiss.

O itabirano foi cristalizador do modernismo em sua plenitude cheia de crises,monstros e utopias. Crise totalizante,porque planetizada num mundo “fomicizado” pela mecanização “coisificante”,daí o conflito da mente do poeta com a realidade total em que vivia,

Luís Costa Lima afirmou: ”Drummond é o maior e último poeta modernista:seu riso corrói,dissolve aquelas dissonâncias que são a regra da vida.Ele assume com a História uma relação aberta”.

Ele se opõe ao “fluir sentimental de Manuel Bandeira,pois que não há piedade em si mesmo por uma vida que podia ter sido e que não foi e cujos elementos de saudade se constituem,assim,em força predominante de um poetar num infinito jogo de recursos para enunciação do inédito.Uma lição de vida”.

O livro “Sentimento do Mundo” contém os seguintes poemas:

SENTIMENTO DO MUNDO- o poeta é surpreendido pela guerra: ”Sinto-me disperso,/anterior a fronteiras,humildemente vos peço que me perdoeis.//Quando os corpos passarem,/eu ficarei sozinho(...)ao amanhecer//esse amanhecer/mais noite que a noite.”

CONFIDÊNCIA DO ITABIRANO- as lembranças da cidade-natal: “Alguns anos vivi em Itabira./Principalmente nasci em Itabira./Por isso sou triste,orgulhoso:de ferro” (principal atividade da cidade) “A vontade de amar,que me paralisa o trabalho,vem de Itabira(...)E o hábito de sofrer,que tanto me diverte,é doce herança itabirana(...)Tive ouro,tive gado,tive fazendas./Hoje sou funcionário público./Itabira é apenas um retrato na parede./Mas como dói!”

CANÇÃO DA MOÇA-FANTASMA DE BELO HORIZONTE.- uma mistura de lenda e metáfora: ”Eu sou a Moça-Fantasma/que espera na rua do Chumbo/o carro da madrugada/Eu sou branca e longa e fria/a minha carne é um suspiro/na madrugada da serra/Eu sou a Moça-Fantasma/O meu nome era Maria,/Maria-Que Morreu –Antes.(...) Eu nunca fui deste mundo:/ Se beijava,minha boca/dizia outros planetas/em que os amantes se queima/num fogo casto e se tornam/estrelas sem ironia//Morri sem ter tido tempo/de ser vossa,como as outras.Não me conformo com isso(...)Não sei como libertar-me”.

POEMA DA NECESSIDADE - utilizando-se do recurso da anáfora(repetições),o poeta anuncia o “fim do mundo”,num cotidiano frenético : “É preciso casar João,/é preciso suportar Antônio,é preciso odiar Melquíades,/é preciso substituir nós todos.//É preciso salvar o país,é preciso crer em Deus,/é preciso pagar as dívidas(...)é preciso colher flores(...)É preciso viver com homens,/é preciso não assassiná-los,/é preciso ter mãos pálidas/e anunciar o FIM DO MUNDO”.

TRISTEZA DO IMPÉRIO - a relação irônica do modernismo com a História,prato preferido de Oswald,aparece na poesia de Drummond: ”esqueciam a Guerra do Paraguai (...)a dor cada vez mais forte dos negros/e sorvendo mecânicos/uma pitada de rapé,/sonhavam com a libertação dos instintos/e ninhos de amor a serem instalados nos arranha-céus de Copacabana,com rádio e telefone automático”.

O OPERÁRIO DO MAR- o homem do povo : “Para onde vai o operário?/Teria vergonha de chamá-lo meu irmão./Ele sabe que não é,nunca foi meu irmão,que não nos entenderemos nunca.E me despreza...(...) quem sabe se um dia o compreenderei?”

MENINO CHORANDO NA NOITE- a união entre seres humanos,flagrados em atitudes simples: “Na noite lenta e morna,morta noite sem ruído,um menino chora./O choro atrás da parede,a luz atrás da vidraça(...) E não há ninguém mais nesse mundo a não ser esse menino chorando.”

MORRO DA BABILÔNIA - a gente brasileira: ”Há mesmo um cavaquinho bem afinado/que domina os ruídos da pedra e da folhagem/e desce até nós,modesto e recreativo,/como uma gentileza do morro”.

CONGRESSO INTERNACIONAL DO MEDO - “Provisoriamente não cantaremos o amor(...depois morreremos de medo” .

OS MORTOS DE SOBRECASACA- “Havia a um canto da sala um álbum de fotografias intoleráveis/alto de muitos metros e velho de infinitos minutos,/em que todos se debruçavam/na alegria de zombar dos mortos de sobrecasaca//Um verme principiou a roer(...) Só não roeu o imortal soluço de vida que rebentava/que rebentava daquelas páginas”.

BRINDE AO JUÍZO FINAL- “Em vão assassinaram a poesia nos livros(...)Os sobreviventes aqui estão”.

PRIVILÉGIOS DO MAR - “Neste terraço mediocremente confortável,/bebemos cerveja e olhamos o mar./Sabemos que nada nos acontecerá.”

INOCENTES DO LEBLON - “Os inocentes do Leblon/não viram o navio entrar(...)tudo ignoram,/mas a areia é quente,e há um óleo suave/que lês passam nas costas,e esquecem”.

CANÇÃO DE BERÇO - “O amor não tem importância(...)Mas também a carne não tem importância(...)Também a vida é sem importância./Os homens não me repetem/nem me prolongo até eles./A vida é tênue,tênue/O grito mais alto ainda é suspiro,/os oceanos calaram-se há muito./Em tua boca,menina,/ficou o gosto de leite?/ficará o gosto de álcool? // Os beijos não são importantes./No teu tempo nem haverá beijos./Os lábios serão metálicos,/civil,e mais nada,será o amor/dos indivíduos perdidos na massa/e uma só estrela/guardará o reflexo/do mundo esvaído/(aliás sem importância).”

INDECISÃO DO MÉIER - “Teus dois cinemas,um ao pé do outro,por que não se afastam/para não criar,todas as noites,o problema da opção.”

BOLERO DE RAVEL - “Alma cativa e obcecada/enrola-se infinitamente numa espiral de desejo/e melancolia(...)Os tambores abafam a morte do Imperador”

LA POSSESSION DU MONDE - “Os homens célebres visitam a cidade./Obrigatoriamente exaltam a paisagem./Alguns se arriscam no mangue,/outros se limitam ao Pão de Açúcar,/mas somente Georges Duhamel/passou a manhã inteira no meu quintal./Ou antes no quintal vizinho do meu quintal”.

OS OMBROS SUPORTAM O MUNDO- um dos poemas mais conhecidos de Drummond da vida,simplesmente,sem mistificação: “Chega um tempo em que não se diz mais :meu Deus(...)não se diz mais:meu amor./Porque o amor resultou inútil./E os olhos não choram/E as mãos tecem apenas o rude trabalho./E o coração está seco.(...)Chegou um tempo em que não adianta morrer”.

MÃOS DADAS - aqui o poeta diz que é melhor não fazer poesia “alienada”.Fala também na necessidade de união para resolver os problemas(“a enorme realidade”).Uma resposta à aflição da guerra: “Não serei o poeta de um mundo caduco./Também não cantarei o mundo futuro./Estou preso à vida e olho meus companheiros./Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças”.

DENTADURAS DUPLAS - a velhice ,num poema dedicado a Onestaldo de Pennafort :”Dentaduras duplas!/Inda não sou bem velho/para merecer-vos(...)daí-me enfim a calma /que Bilac não teve/para envelhecer(...)feéricas dentaduras,admiráveis presas,/mastigando lestas/e indiferentes/a carne da vida!”

A NOITE DISSOLVE OS HOMENS - a Portinari : “A noite desceu.Que noite!/Já não enxergo meus irmãos(...) Tremenda,/sem esperança...Os suspiros/acusam a presença negra/que paralisa os guerreiros./E o amor não abre caminhão/na noite.(...)A noite anoiteceu tudo.../O mundo não tem remédio.../Os suicidas tinham razão(...) O triste mundo fascista se decompõe ao contato de teus dedos(...) O mundo /se tinge com as tintas da antemanhã/e o sangue é doce,de tão necessário/para cobrir tuas pálidas faces,aurora.”

MADRIGAL LÚGUBRE - “Em vossa casa feita d cadáveres(...)quisera eu morar(...)Cá fora é o jornal sujo embrulhando fatos,homens e comida guardada.(...)Dai-me vossa cama,princesa,(...)sutil flui o sangue nas escadarias”.

LEMBRANÇA DO MUNDO ANTIGO - “Clara passeava no jardim com as crianças./O céu era verde sobre o gramado,/a água era dourada sob as pontes,/outros elementos eram azuis,róseos,alaranjados(...)Havia jardins,havia manhãs naquele tempo!!!”

ELEGIA 1938 - “Trabalhas sem alegria para um mundo caduco,/onde as formas e as ações não encerram nenhum exemplo.(...)Aceitas a chuva,a guerra,o desemprego e a injusta distribuição/porque não podes,sozinho,dinamitar a ilha de Manhattan.”

MUNDO GRANDE - “Não,meu coração não é maior que o mundo./É muito menor./Nele não cabem as minhas dores/Por isso gosto tanto de me contar./por isso me dispo,/por isso me grito,/por isso freqüento os jornais,me exponho cruamente nas livrarias:/preciso de todos(...)o grande mundo está crescendo todos os dias,/entre o fogo e o amor.//Então,meu coração também pode crescer(...) – Ó vida futura!nós te criaremos”.

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Moisés Neto

Professor com pós-graduação em Literatura, escritor, membro da diretoria do SATED (Sindicato dos artistas e técnicos em espetáculos de diversão em Pernambuco).


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