Dias Gomes, Ferreira Gullar e Drummond:

A visão do social no teatro e na poesia do Brasil.

por MOISÉS NETO.

Alfredo de Freitas Dias Gomes nasceu em Salvador em 1922 e faleceu num trágico acidente automobilístico ocorrido em São Paulo no final dos anos 90.Em 42, estreou como dramaturgo com uma comédia : "Pé de Cabra". Seguiram- se : "Amanhã Será Outro Dia", "Doutor Ninguém" e "Zeca Diabo". Dedicou- se ao rádio e à televisão. Em 1959, escreveu "O Pagador de Promessas"(marco da dramaturgia nacional), peça que se transformou em filme dirigido por Anselmo Duarte e venceu a Palma de Ouro no Festival de Cinema de Cannes, Dias Gomes ganhou destaque nacional. Escreveu ainda "O Santo Inquérito", "A Revolução dos Beatos", "O Berço do Herói", "A Invasão", "Meu Reino por um Cavalo" e outras peças, sempre com temática em defesa da justiça social e contra a opressão. Para a TV escreveu , dentre outras novelas, "O Bem-Amado" (1973), "Saramandaia" (1975) e a censurada versão original de "Roque Santeiro" (1976) .

Em "O Pagador de Promessas", vemos o personagem central, Zé do Burro, um homem simples do interior, ingênuo e fiel aos valores em que crê (o misticismo é o irmão gêmeo da ignorância e foi gerado no ventre negro da miséria e da exploração do homem pelo homem), é levado ao desespero e à morte, traído pelo governo e pela igreja , embora ajudado pelo povo: "Zé do Burro, de faca em punho, recua em direção à igreja . Sobe um ou dois degraus de costas. O Padre vem por trás e dá uma pancada em seu braço, fazendo com que a faca vá cair no meio da praça. Zé do Burro corre e abaixa- se para apanhá-la. Os policiais aproveitam e caem sobre ele, para subjugá-lo. E os capoeiras caem sobre os policiais para defendê- lo. Zé do Burro desapareceu na onda humana. Ouve- se um tiro . A multidão se dispersa como num estouro de boiada. Fica apenas Zé do Burro no meio da praça, com as mãos sobre o ventre. Ele dá ainda um passo em direção à igreja e cai morto" (esta é uma das rubricas da cena final da peça) . Tudo porque queria cumprir uma promessa religiosa, carregando uma cruz até dentro da igreja. Ele e sua mulher(Rosa), depararam-se com prostitutas e outros tipos na cidade de Salvador, onde a ambição desmedida, o dinheiro e o jogo político colocam em xeque valores como amizade e dignidade humana . No final, o povo coloca o cadáver de Zé do Burro sobre a cruz e entram todos na igreja.

"O Berço do Herói" : Cabo Jorge é o nome de uma cidade. Este nome foi dado em homenagem ao militar que morreu na Itália lutando contra os nazistas, "pagara com a vida o direito de ser livre. Soldado da democracia, enchera de glória e orgulho o coração da pátria amada". A cidade vivia de sua memória(turismo). As datas do seu nascimento e de sua morte eram pontos altos do calendário cívico de todas as escolas do Brasil até que um dia o cabo reaparece. Na verdade, ele não morrera em combate. Fugira, desertara. Depois do processo de anistia geral ele resolvera voltar à Pátria , à sua cidadezinha. A tradição heróica do exército não podia ser manchada por esta gozação. O comércio e a indústria também sofreriam. Dias Gomes traça uma crítica ao poder militar brasileiro em seus anos de chumbo(ditadura). No meio das prostitutas cabo Jorge conclui: " Parece que a única maneira de não desmentir o boletim do meu regimento era eu dar um tiro na cabeça ou beber formicida. Só que me falta coragem para isso. Sempre tive um medo danado de morrer. É tão bom a gente está vivo. E melhor ainda é a gente está vivo e na terra da gente(...) sabem o que eu acho? Que o tempo dos heróis já passou. Tudo está suspenso por um botão. O botão que vai disparar o primeiro foguete atômico. Este é que é o verdadeiro herói. O verdadeiro Deus. O deus- botão(ri) E vocês ficam cultuando a memória de um herói absurdo. Absurdo sim, porque imaginam ele com qualidades que não pode Ter. Coragem, caráter, dignidade humana...não vêem que tudo isso é absurdo? (O prefeito e o general continuam impassíveis) . "Qual de nós você prefere, Cara de Anjo?" , perguntam as prostitutas ao cabo Jorge. "Todas", ele responde. As prostitutas dão cachaça envenenada dentro de um coco, cabo Jorge, o "Cara de Anjo ", bebe o líquido encomendado pelo Major e morre. As beatas chegam, apedrejam o bordel , as prostitutas gritam: "Chupadoras de hóstias! Beatas de uma figa! Estão é com falta de homem! Vão jogar pedra na mãe!" A prostituta Matilde tem uma idéia: Corta a cabeça do cabo Jorge com o vidro quebrado da janela e diz que foi uma das pedras que a beata jogaram, que o matou. "Não morreu numa guerra de verdade , pra vir morrer numa guerrinha besta de mulheres" , resmunga outra personagem, enquanto o padre e o major decidem que não houve culpados na morte do cabo, a cidade continuaria como era no início, antes do incômodo reaparecimento :"Assim senhoras e senhores,/ foi salva a nossa cidade./ Com pequenos sacrifícios/ de nossa dignidade,/ com ligeiros arranhões/ em nossa castidade,/ e algumas hesitações entre Deus e o Demônio,/ conseguimos preservar/ todo o nosso patrimônio" , sentencia o Major .

Em "A Invasão" Dias Gomes aborda o problema dos sem teto nos centros urbanos. Um drama intenso e amargo. Ele investiga causas e conseqüências dos nossos problemas sociais numa linguagem despojada e contundente . Aponta soluções drásticas num país onde impera a desigualdade social e vive de politicagem . A peça é uma espécie de crônica ao Brasil pós 64. Dias quer alertar o povo da necessidade ser independente. Seu teatro não busca divertir os burgueses. É um teatro de revolta, de amargura. Mesmo suas comédias são atravessadas por um ironia mordaz . Ele despreza os clichês partidários . Nesta peça, os invasores de um prédio, "favela do esqueleto", o povo brasileiro oprimido e explorado por um governo incompetente, dão vazão às suas angústias e anseios. A morte de Mané Gorila, encarregado do despejo tem um toque de vingança da plebe rude. Um juiz autoriza a permanência do grupo no prédio e tudo termina como num delírio.

"A Revolução dos Beatos" também trata do tem dos subdesenvolvidos do Brasil. Um caso de histeria coletiva em Juazeiro do Norte , Ceará, que segue Padre Cícero. A história de um camponês , do misticismo à tomada der consciência social.

" Meu Reino por um Cavalo " é uma comédia caótica sobre um dramaturgo em crise(Otávio Santarrita), questionando os valores sociais tidos como padrão e como absolutos. Caos , pessimismo, negatividade, no meio de um país absurdo, vão chateando Otávio que, em vez de ficar deprimido, começa a se divertir com o caos. A conformidade burguesa é questionada. O trabalho, a mulher, os filhos, as posições ideológicas, a amante, tudo gira numa seqüência absurda que, com linguagem inovadora, brinca com nossa miséria existencial.

"O Santo Inquérito" : História de Branca Dias, torturada e morta pela santa inquisição na Paraíba, Por ansiar a liberdade terminou na fogueira : "Há um mínimo de dignidade que não se pode negociar", diz a mártir.

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José Ribamar Ferreira Gullar nasceu em 1930 em São Luís do Maranhão. Em 49 publicou seu primeiro livro de poemas "Um Pouco Acima do Chão". Em 54 lança "A Luta Corporal", um dos livros mais discutidos de sua geração, rico em pesquisas formais. Gullar foi um dos que falou no poema como "objeto artístico. Em 56, participou da primeira exposição de poesia concreta. Liderou o neoconcretismo (a teoria do não- objeto) . Abandonou o concretismo e voltou a fazer o que se poderia chamar de verso "tradicional". 1958 foi o ano de "Poemas" e daí sua poesia social sobrepõe- se aos seus experimentalismos com a palavra. Seguiram- se : "João Boa Morte , Cabra Marcado para Morrer"(62, na fase mais politizada), "Dentro da Noite Veloz"(75), "Poema Sujo (76-escrito no exílio da Argentina , retrata os anseios do cidadão brasileiro , suas esperanças, vitórias, derrotas. São versos "sujos", disse o poeta) e "Na Vertigem do Dia" (80) . Escreveu também ensaios ("Cultura Posta em Questão"-63 e "Vanguarda e Subdesenvolvimento"-69) teorizando sobre o engajamento do artista no processo de evolução social., peças teatrais (foi parceiro de Dias Gomes em "Doutor Getúlio, sua Vida e sua Glória"-68, e de Oduvaldo Vianna Filho em "Se Correr o Bicho Pega, se Ficar o Bicho Come") e assinou roteiros para a televisão, com o "intuito de manter viva" sua poesia. Nesses textos seu lirismo borbulha uma espécie de poesia de resistência, como faria também Chico Buarque.

Os versos de Gullar exibem imagens brutais. É uma obra carregada de tensão psíquica e ideológica - contra a repressão e por justiça. Denuncia os problemas na época da guerra fria (EUA x URSS), o racismo , o drama dos países subdesenvolvidos, o cinismo capitalista, o perigo das armas atômicas. Por outro lado, esse poeta do mundo também faz muitas vezes referência à sua infância, aos seus parentes e conhecidos, ao cotidiano da velha São Luís do Maranhão..

"Sou um homem comum, brasileiro, maior, casado, reservista/ e não vejo na vida, amigo/ nenhum sentido, senão/ lutarmos por um mundo melhor(...) O latifúndio está aí matando(...) o chase bank(...) a nos sugar a vida/ e a bolsa(...) A sombra do latifúndio mancha a paisagem(...)somos milhões e homens/comuns / e podemos formar uma muralha/ com nossos corpos de sonhos e margaridas" (no poema "Homem Comum", do livro "Dentro da Noite Veloz").

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Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), mineiro de Itabira, foi outro escritor que se dedicou ao conflito do homem com a causa social, mostrando que a solidariedade é um dos maiores valores para o ser humano. Seu lirismo ao tratar o cotidiano e os problemas do mundo é marcado por um humor fino , requintado, filosófico, às vezes. Sua obra pode ser dividida em três fases:

1ª Fase: GAUCHE, "torto": ("Alguma Poesia" em 1930 e "Brejo das Almas" em 1934)- Ironia , humor, poema- piada, síntese, linguagem coloquial . Faltam saídas, daí só restar ao poeta a poesia, isto é, a esperança. Há nesta fase gauche uma espécie de "inexperiência do sofrimento e deleição ingênua" com o próprio indivíduo, como afirmou o próprio Drummond. Vejamos o poema- pílula "Cota Zero": "Stop/ a vida parou/ ou foi o automóvel?".

2ª Fase: Individualismo nas contradições entre o eu e o mundo("Sentimento do Mundo" em 1940, "José" em 1942 e "Rosa do Povo" em 1945) O Eu- lírico interessa- se pelos problemas sociais e exibe sentimento de solidariedade numas poesia social, como já dissemos. "Não, meu corpo não é maior que o mundo./É muito menor./ Nele não cabem nem as minhas dores. /Por isso gosto tanto de me contar./Por isso me dispo./Por isso me grito,/por isso freqüento os jornais, me exponho cruamente em livrarias: Preciso de todos (...) o mundo, o grande mundo está crescendo todos os dias/ entre o amor e o fogo,/ entre a vida e o fogo,/ meu coração cresce, dez metros e explode. / -Ó vida futura! Nós te criaremos." ( trecho de "Mundo grande" , poema do livro "Sentimento do Mundo")

3ª Fase: A Poesia Filosófica ("Claro Enigma" em 1951, "Fazendeiro do Ar" em 55, "Vida Passada a Limpo" em 59). Pessimismo, preocupação formal na construção dos poemas (verso regular, soneto, seleção vocabular). Quanto ao conteúdo dos versos encontramos ali o existencialismo :Vida/ morte/ velhice/ amor/ família/ infância/ metalinguagem -metapoema, o questionamento da finalidade da própria poesia.

Em "Lição das coisas",1962 percebemos a liberdade formal, neologismos, aliterações, sugestões visuais e rupturas sintáticas (influências do Concretismo?) .

Nos anos 70 e 80 ("Boitempo" , " As Impurezas do Branco", "A Paixão Medida", "Corpo" e outros), sua poesia é marcada por recordações: A infância em Itabira, a família. O humor cotidiano e a auto-ironia permanecem .

Há também os livros póstumos : "O Amor Natural", publicado em 1992 (poemas eróticos) e "Farewell".

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Moisés Neto

Professor com pós-graduação em Literatura, escritor, membro da diretoria do SATED (Sindicato dos artistas e técnicos em espetáculos de diversão em Pernambuco).


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