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Machado de Assis- Contos
Muito já foi dito sobre o grande mestre das letras nacionais: Que ele procurou ir além das aparências e revelar ao leitor os "motivos secretos" das ações humanas, fazendo assim a análise do mundo interior de suas personagens, investigando as causas profundas do comportamento humano e, fazendo isso, mostrou que o homem é um ser volúvel, mesquinho, interesseiro, que pensa apenas em si próprio e no seu bem estar. Desde seu primeiro romance , "Ressurreição", publicado em 1872, até o último, "Memorial de Aires", 1908, Machado denunciou como poucos as armadilhas da vaidade, do egoísmo e da violência. Seu humor, pessimismo, ironia "amarga e cruel" vão tecendo enredos onde ação e tempo perdem a importância, ao mostrar a luta pela vida na qual o homem vai destruindo seus irmãos de forma implacável para conseguir o que quer e no final deparar- se com o vazio . A trama só interessa enquanto parte da análise feroz empreendida por um narrador inteligente e perspicaz que busca a todo momento a cumplicidade do leitor (metalinguagem). Foram nove romances . Os da fase romântica são: "Ressurreição" (1872), "A Mão e a Luva" (1874), "Helena" (1876), "Iaiá Garcia" (1878). Os da fase realista: "Memórias Póstumas de Brás Cubas" (1881) ,"Quincas Borba" (1891), "Dom Casmurro" (1899), "Esaú e Jacó" (1904) e "Memorial de Aires" (1908). Machado foi um hábil cronista e um sofrível autor teatral. Contos foram mais de duzentos. Analisaremos alguns deles: 1. "A Desejada das gentes" : Um conto sem narrador e com parágrafos enormes. Lê-lo é como passear com Machado pelas ruas do Rio de Janeiro na Segunda metade do século XIX . A narrativa ironiza a fé, o dinheiro e a alma humana em geral. Machado é um homem materialista . É uma narrativa de reminiscências (como nos romances "Memórias Póstumas..." e "Dom Casmurro"). A "Divina Quintília" é evocada por um "Conselheiro"(titulo honorífico do Império, sempre citado por Machado) que fala a um interlocutor, também sem nome. O tio da "Divina" proibira-lhe o namoro , há muitos anos atrás, com o conselheiro, que o chama de "velha alma aleijada " , pois este usa Quintilha como "muleta". É um exemplo do humor ferino de Machado . "O que é a saudade senão uma ironia do tempo e da fortuna?", pergunta o conselheiro. Machado adora aforismos(citações). Ao descrever a Divina, Machado zomba dos românticos : "Olhos noturnos, mas sem mistérios nem abismos. Voz brandíssima, um tanto apaulistada, a boca larga, e os dentes , quando ela simplesmente falava, davam-lhe à boca um ar de riso". A época é 1855-1859. Os Conselheiro cita o caso de um companheiro de escritório que também quase se apaixonou pela rica e bela Divina : os bens da moça "eram um dos feitiços dela". Não "vamos divinizar o dinheiro nem bani-lo; não vamos crer que ele dá tudo, mas reconheçamos que dá alguma coisa e até muita coisa". O amigo levado pela tristeza e uma nomeação foi ser juiz no sertão da Bahia , onde definhou e morreu. O Conselheiro queria casar com Quintilha . Ela olhou-o "espantada , como se olha para uma pessoa cujas faculdades parecem transtornadas(...), pediu que fizesse dos meus sentimentos pessoais e sem eco, uma página de uma história acabada". Se antes a impedira o tio , quando o velho morre ela diz que tinha trinta e três anos e estava velha e que seria melhor continuarem amigos e jurou-lhe: "Não casarei nunca". Machado desvenda os recantos da alma feminina em Quintilha: "largamente e intimamente ". Os ambientes são os mesmos de outras narrativas machadianas. As mesmas ruas e bairros do Rio. Perpassam todo o texto citações ao Romantismo. Quer seja o "Werther" de Goethe (romance sobre um jovem que se mata por um amor não correspondido. Livro que deu origem ao movimento romântico) ou mesmo frase melodramáticas: "Muitas vezes quis dizer- lhe o que sentia, mas as palavras tinham medo e ficavam no coração(...), escrevi cartas sobre cartas", lamenta-se o Conselheiro. A amada , como todos os outros personagens no conto, além do Conselheiro e seu interlocutor sem personalidade própria, não tem voz. "A amizade que o Conselheiro sentia por Quintília era a sentinela do amor. Não podendo mais contê-lo, deixou que ele saísse ". É amor platônico. Ela adoece, uma "moléstia na espinha". Ele cuida dela. No leito de morte, ela permite o casamento. Diz o Conselheiro: "Não me relembre esta triste cerimônia; ou antes deixe-me relembrá- la, porque me traz algum alento do passado. Não aceitou recusas nem pedidos meus; casou comigo à beira da morte. Foi no dia 18 de abril de 1859. Passei os últimos dois dias , até 20 de abril, ao pé da minha noiva moribunda, e abracei- a a última vez, feita cadáver ("A desejada"?). Tudo isso é muito esquisito. Não sei o que dirá a sua fisiologia . A minha que é de profano, crê que aquela moça tinha ao casamento uma aversão puramente física . Casou meio defunta , às portas do nada. Chame- lhe monstro , se quer, mas acrescente divino". 2. "Uns Braços" São três personagens: Inácio, Severina e Borges. O primeiro é escrevente empregado no escritório de Borges, que é casado com Severina, a dona dos braços que dão título ao conto. Braços que "fechavam um parêntesis no meio do longo e fastidioso período da vida" que Inácio levava. Num jogo de sedução e malícia armado por Machado, é narrada uma história que se passa na Rua da Lapa, em 1870, Rio de Janeiro. No início do conto vemos Borges em sua residência quando "abarrotava-se de alface e vaca" durante o jantar e detratava o pobre Inácio de quinze anos que vivia entediado por executar tarefas tão estúpidas e corriqueiras e preferia apreciar os dotes da esposa do patrão que, desconfiada, arma situações que comprometam o rapaz, por quem sente até certa atração. Severina, a esposa de Borges, tem vinte e sete anos "floridos e sólidos". Num jogo metonímico (a parte pelo todo), a narrativa joga com o real e o insólito: "Inácio demorou o café o mais que pôde. Entre um e outro gole, alisava a toalha, arrancava dos dedos pedacinhos de pele imaginários , ou passava os olhos pelos quadros da sala de jantar, que eram dois, um São Pedro e um São João". Uma contraposição cômica diante de um quase adultério. Borges a reclamar que "trabalhava como um negro" enquanto a noite caíra de todo; e a esposa ouve o "tlic" do lampião de gás da rua., que acabavam de acender. O "fedelho" sonhava em possuir a esposa do patrão e ela a devanear sobre aquele "amor adolescente e virgem". Está criado o "clima". "Dona Severina viu que a boca do mocinho, graciosa estando calada, não o era menos quando ria". Num domingo foi ao quarto dele, que depois de observar o mar e as gaivotas, adormeceu na rede a ler um folhetim barato. Ele sonhava com ela . Dona Severina não resiste. Vai até a rede e beija o rapaz na boca. O rapaz pensou que era um sonho. Dias depois Borges despediu- o : "Inácio saiu sem entender nada". Até os braços de dona Severina , que ele tanto admirava , mantinham- se agora sempre cobertos com um xale. "Estava tão bem! Falava-lhe com tanta amizade ! Como é que de repente...tanto pensou que acabou supondo de sua parte algum olhar indiscreto, alguma distração que a ofendera. Não importa; levava consigo o sabor do sonho. E através dos anos, por meio de outros amores, mais afetivos e longos, nenhuma sensação achou igual à daquele Domingo , na Rua da Lapa, quando ele tinha quinze anos ". Percebemos neste conto o refinado humor do nosso Machado. Desmascara os personagens do lar (marido e esposa), simplesmente introduzindo um terceiro elemento: um jovem adolescente. Tece-se assim a teia que envolveria sua descrença na fidelidade conjugal. Na família. Característica que permeia boa parte de sua ficção.
3. "Mariana" Neste conto- evocação, o narrador faz uma análise de um relacionamento amoroso que tem como eixo uma senhora um tanto quanto misteriosa: a personagem-título . Após dezoito anos na Europa , Evaristo volta e procura antiga "namorada". O ano é 1890.Ele estivera em Paris. Um repórter lá, havia perguntado sobre a "revolução no Rio de Janeiro". Como sabemos, Machado era funcionário do Império e vai continuar assim na República, portanto seus comentários são sempre cheios de sutilezas. O conto divide-se em três capítulos. O segundo é um delírio onde Evaristo , já na sala da sua antiga amada, imagina tê-la outra vez entre os braços, a dizer que ainda o ama muito (por causa dela ele "fugira " do Brasil, para não sofrer quando ela casou com outro) . Na verdade, ela o trata friamente no terceiro capítulo. Mesmo depois da morte do marido, ela não quer saber dele, o que o deixa contrariado . Sendo assim, ele prefere voltar a Paris , onde alguns amigos que na sua saída iriam estrear uma peça, amargam o fim de uma temporada de retumbante fracasso. Machado faz uma reflexão engraçada: "Coisas de teatro. Há peças que caem(não têm bom êxito). Há outras que ficam no repertório." Uma sutil crítica aos sentimentais, aos românticos. Com direito ao ridículo das lágrimas e arroubos de paixão.
4. "A Cartomante" Amigo de infância de Vilela, Camilo vai recebê-lo no porto quando o companheiro volta ao Rio de Janeiro , casado , para abrir banca de advogado. Rita é bela e logo inicia um caso de amor com Camilo. Ela freqüenta uma cartomante. O narador diz que Camilo, como o próprio Machado, é incrédulo e faz pouco caso das superstições de Rita. Camilo é o próprio burguês, dependente da mãe , que tudo fez para vê-lo um homem de respeito. Com a morte desta intensifica-se a sua dependência em relação a Rita. Porém, cartas anônimas começam a minar a confiança do rapaz. Estaria Vilela a par de tudo ? As relações adúlteras davam- se na casa de uma comprovinciana de Rita. "Há mais coisas entre o céu e a terra do que supõe nossa vã filosofia". Machado cita Shakespeare. As cartas se sucedem. Camilo suspende as visitas. Vilela estranha. Camilo dá uma desculpa boba. Um bilhete na hora do almoço atrai Camilo à casa de Vilela. No meio do caminho um acidente obriga-o, por coincidência, a para na frente da casa da cartomante de Rita. Hesita, mas termina entrando e, após uma consulta cheia de revelações sobre ele e sua amante , ele, que não acreditava em nada, sai confiante, quando escuta a vidente acertar coisas sobre a vida dele e dizer que tudo continuaria bem, que o marido de Rita não desconfiava de nada. Ao chegar na casa de Vilela este o espera com uma pistola na mão: matara a esposa adúltera e então, atira em Camilo. O leitor fica sem saber quem escrevera as cartas anônimas. Novamente percebemos Machado a analisar as relações humanas num mundo marcado pelo egoísmo , pelo cinismo.
5. "A Igreja do Diabo" "Conta um velho manuscrito beneditino que o Diabo, em certo dia, teve a idéia de fundar uma igreja"(comparando-a a uma "hospedaria barata" ).Assim começa um dos mais ferinos contos de Machado: "A Igreja do Diabo" ( composto por quatro capítulos) seria o meio mais eficaz de combater as outras religiões(Maomé, Lutero) e destruí-las de uma vez. Lá não haveria obrigações e sim vinho e pão à farta. No "infinito céu azul", o "Senhor" quer saber qual o propósito do Diabo: "Negócios mais altos", responde ele. "Tudo que dizes e redizes está dito e redito pelos moralistas do mundo", insiste Deus. "Nego tudo", respondeu o Diabo. E voltou à terra. Na sua igreja, soberba, luxúria, preguiça, avareza, hipocrisia , ira, inveja(que supre o talento), tudo isso seria incentivado. Toda as formas de respeito seriam condenadas. Quanto ao "amor ao próximo", isso seria "simples invenção de parasitas. Não se devia dar ao próximo senão indiferença". E o Diabo citava Galiani, padre napolitano:" Leve a breca o próximo! Não existe o próximo!". Só se a próxima for a mulher dos outros. Aí, sim. Sucesso: Logo todo mundo queria fazer parte da igreja do Diabo. Como no capitalismo, onde o homem vende sua força de trabalho ao patrão. Machado tripudia sobre o jogo de aparências na classe burguesa que freqüenta igrejas. A igreja do Diabo faz sucesso no mundo todo. Porém, para seu desespero, alguns dos fiéis começam a freqüentar mesquitas, dar esmolas, socorrer vítimas. O Diabo vai falar com Deus e perguntar a razão disso. E Deus responde:" É a eterna contradição humana". 6. "Missa do Galo" Um dos contos mais discutidos de Machado de Assis , foi publicado em "Páginas Recolhidas"(1899). Gira em torno de uma insinuação de adultério. O autor aproveita para alfinetar um costume antigo: a missa na noite de Natal. Nesta, o marido está na casa da amante. A esposa (Conceição- Concepção? Nossa Senhora?. O autor gosta de trabalhar bem o nome dos seus personagens, como em "Dom Casmurro": Justina, Glória, José Dias, Bento e no romance onde expõe a rivalidade entre irmãos "Esaú e Jacó", nomes bíblicos). Oswald de Andrade já chamou-o de "Machado Penumbra". O fato de Machado ter sido dado como modelo de autor perfeito incomoda os irreverentes , como o próprio Oswald também o foi, a seu modo. A Missa: Um jovem("Senhor Nogueira"- dezessete anos) hospeda-se na casa de um escrivão, "Chiquinho", que já fora casado com uma prima sua. Está armado o circo: Esposa insatisfeita busca a compreensão de um jovem, o narrador provoca risos nos leitores . É quase meia- noite e o adolescente que é o narrador( conta a história já velho, lembrando daquela noite) estava lendo "Os Três Mosqueteiros" , de Alexandre Dumas, o que sugere um clima romântico. "A família era pequena, o escrivão, a mulher, a sogra e duas escravas, costumes velhos". Machado é seco, brusco. A obsessão pelo adultério é repetitiva: O esposo "trazia amores com uma senhora, separada do marido, e dormia fora de casa uma vez por semana". Todos sabiam disso, inclusive nosso narrador, que recorda de tudo. Conceição era chamada de "Santa" , ou então seria como "maometana que aceitaria um harém" ,contanto que as aparências fossem mantidas. É a hipocrisia social. "Tudo nela era passivo". Ela era "simpática" e "perdoava tudo. Não sabia odiar, pode ser até que não soubesse amar". Porém naquela noite, sob a luz do candeeiro de querosene , de modo insinuante, Conceição , vestindo um roupão branco, compartilhou momentos sensuais com aquele menino. "Já leu A Moreninha ?", disse a mulher de vinte e sete anos, e o narrador diz que ela fez isso "enfiando os olhos por entre as pálpebras meio cerradas", sem os tirar do narrador: E "passava a língua nos beiços para umedecê- los" . O jovem tenta sair, mas ela o detém: "Ainda é cedo", diz exibindo partes do corpo, como no conto "Uns Braços", cujo tema é semelhante: Um jovem hóspede(virgem?) e um esposa disposta a pecar :"Mamãe está longe , tem sono muito leve; se acordasse agora ...". Com essa conversa, nosso narrador esqueceu a hora marcada com um vizinho para que saíssem para a tal missa do galo. Esqueceu também de outras coisas que aconteceram naquela noite. Há impressões "truncadas ou confusas". Ela pôs a mão no ombro do rapaz". Na parede da sala, um quadro representava Cleópatra. No oratório uma imagem de Nossa Senhora da Conceição, "minha madrinha", diz a anfitriã. Uma espécie de "sonho magnético" envolveu os dois naquele momento: "a língua e os sentidos". O silêncio entre os dois era ardoroso e misturou-se ao silêncio da rua até que o vizinho gritou: "Missa do Galo!" , quebrando o "magnetismo" sugerido pelo narrador, que chegando na missa ficou inquieto: "A figura de Conceição interpôs- se mais de uma vez, entre mim e o padre". O jovem viaja para o interior do Rio de Janeiro e quando volta o marido de Conceição havia morrido , vítima de um ataque de apoplexia. Ela havia se mudado para o distante bairro de Engenho Novo: "Ouvi mais tarde que casara com o escrevente do marido". É a alfinetada final do narrador. |
Professor com pós-graduação em Literatura, escritor, membro da diretoria do SATED (Sindicato dos artistas e técnicos em espetáculos de diversão em Pernambuco). |