Os abismos de Jomard Muniz de Britto

I

Este trabalho de abordagem da poeticidade de Jomard Muniz de Britto tem como objetivo destrinchar a obra deste controverso escritor pernambucano marcado pela polêmica e que vem agitando a vida cultural do Brasil através de quatro décadas, com seus projetos que questionam o convencional a ponto de torná-lo absurdo, irreconhecível, dinâmico.

A obra de Jomard é imensa, por isso fizemos uma triagem e neste pequeno ensaio abordamos apenas os seguintes livros: "Terceira Aquarela do Brasil", "Inventário de um Feudalismo Cultural" (em parceria com o artista plástico Sérgio Lemos). "Bordel Brasilírico Bordel", "Outros Orfeus" e "Arrecife de Desejo" .Esta seleção foi feita quando entrevistamos o próprio poeta, que nos orientou quanto a jornais e revistas, como a famosa "Mapa", que era dirigida por ninguém menos que Glauber Rocha e que em seu 3° número em 1958, publicou um artigo de 13 páginas da autoria de Jomard, intitulado "De Poesia", o qual, durante anos, serviu de base para diversas discussões, ou, ainda, o suplemento literário "Correio das Artes" da Paraíba (o mais antigo em circulação do país) , estado onde Jomard lecionou (ele foi professor da UFPE e UFPB) . Outra revista que consultamos foi a "Presença Literária" (Paraíba).

II

Jomard é o que se chama de artista "Multimídia" : utiliza-se de vários recursos para divulgar seu trabalho. Buscando sempre a contemporaneidade, passando pelo Neoconcretismo, o poema-processo, o Tropicalismo, a Vanguarda Permanente (como sugere Décio Pignatari), experimentos conceituais, minimalismos performáticos, recicla-se, debocha-se, é contundente e paga um preço alto por ousar nesta "Psicanálise Selvagem".

Este "filho de paraibano", curte também o fazer coletivo, a criatividade compartilhada e seus textos já serviram de combustíveis para grupos de teatro como o extinto "Vivencial Diversiones", um cabaré que mudou o teatro pernambucano na década de 70.

Jomard também é cineasta e neste campo o que se sobrepõe é seu texto que é ácido, doce, agressivo e estimulante. É um ato de "escreviver" bem humorado, rompendo as paredes que dividem o erudito do popular em criações intersemióticas que reaproximam arte e vida, cidade (O Recife) e o Cosmos numa corrente libidinal, política, rigorosamente intuitiva, uma poeticidade tenra que mostra o "reciverso" dos medalhões da cultura pernambucana, com trocadilhos que só os iniciados entendem, como por exemplo "A deseducação pelas pedras e perdas da marginália", (referindo-se ao livro "A Educação pela Pedra" de João Cabral de Melo Neto).

Jomard desmistifica, propõe um conflito dialógico, uma releitura, é metalingüístico ao procurar no próprio umbigo todas as misérias e transpirações do mundo, num raro equilíbrio entre o riso e o choro. Ele é de uma formação cultural invejável. Seus escritos já provocaram escândalos, como o poema "A morte da cultura popular" em "Bordel Brasilírico Bordel" (página 203), que motivou o recolhimento da edição inteira de um jornal para que se evitasse a divulgação de algo tão "perigoso". Jomard também foi preso e amargou quase um mês no Forte das Cinco Pontas ao lado de Gregório Bezerra, durante o regime militar.

Muito além do "jogo de linguagem", a poética de Jomard mantém acesa a chama do inconformismo diante das injustiças e oligarquias culturais, tentando sempre ser muito mais do que apenas ter: Tolerância, dignidade, solidariedade, desejo, desrepressão, responsabilidade, alegria de conviver sem ocultar o sentimento trágico do mundo. "Não guardar rancores nem resguardar amores: Tudo pela Fricção da Carne do Mundo". Tudo mais é travessia e travessuras.

III

O que é "A poesia" para Jomard? É a comunicação, a expressão do ambíguo. O resgate da intuição do artista e o encontro da plenitude no mistério da criação. A revelação amorosa do que estava oculto. Para Jomard, se não houver mistério ou ambigüidade a poesia é falsa.

A reinauguração da palavra, o sustentáculo da poesia, aproximando o ser do mundo. A angústia do poeta vem do atravessar, do ir além da palavra, do som, da tensão, da polaridade, da estrutura significativa. Ali, onde o lugar comum é questionado, nosso poeta festeja a libertação , a autonomia, o paradoxo abissal, as novas relações e aproximações, destilando, vivificando o ser e o nada.

O campo onde se projeta a poesia de Jomard (Papel, computador, ou...?) é um campo dinâmico onde as letras tripudiam. Um espaço plástico onde, mudando de configuração, elas diminuem, crescem, cruzam-se, deixam de ser os registros passivos. É o "poema-quadro" que busca o poema audível, musical. Eis o "Enigma Plástico", onde a poesia dele se aproxima do cinema, fusão de imagem e som. Voz, ritmo na "pronúncia do ser", da "Voz interior". "Frevo e merengue na beira dos mangues, maracatu de Maria Aparecida no cume dos morros, anjo avesso pelas avenidas do mundo. O buraco é espanto espasmo, escândalo" (de "O Buraco Somos Nós").

A poesia de Jomard faz rima interna e vai pelas beiras buscando um eco, um ritmo que tem sangue quente:

"Nossa Afro-Resistência pode ri(t)mar com nossa tropical malemolência ou desistência?" (de "Inventário de um Feudalismo Cultural").

Muitas vezes as rimas propositais criam uma musicalidade excitante como no poema "A fina flor da futilidade" do livro "Terceiro Aquarela do Brasil".

"É tudo sentir, ressentir só pela metade, beijar, beijar, beijar mesmo sem ter vontade é esconder o medo do segredo, nossa liberdade de sonhar, sonhar, sonhar até a crueldade é tudo pedir só pela metade da vontade é tudo sofrer só pelo desejo da outra metade fina como a flor da cumplicidade".

Do mesmo livro vemos um poema para um ator do "Vivencial Diversiones" poema que é uma paródia ao célebre "Poema das sete faces" de Drummond:

"Quando nasci, um anjo solto por aí,desses que mergulham na Praia dos Milagres disse: Vem. perna! Vem mais pra junto de mim (Baixinho: que somente aqui começa a vida)" (Poema para o ator Pernalonga, morto no ano 2000)

No seu livro "Outros Orfeus", Jomard reveste-se do mito grego Homem- perdeu — sua- amada- cura- e- ilumina- outros- corações e projeta sua lira em direção ao caleidoscópio, em direção aos excluídos, transformando-os em ícones, que mais parecem santos de gesso pintado, desses que encontramos nos tabuleiros dos camelôs do Recife. Como diz a escritora Leila Miccolis, "metamorfoseando sua obra pessoal numa obra coletiva (...) gigantesco mosaico panorâmico e cultural criado através da concepção logística da contemporaneidade". (Depoimento de Leila sobre Jomard)

Como vemos, o trabalho de Jomard acha que o mal no corpo, ou o bem, é interligado ao resto. Nada é isolado, tudo é reflexo. É conseqüência: a obra de Jomard é holística nesse sentido. Uma aglutinação onde neologismo e velhas regras se abraçam.

"Todos familionários e delinqüentes de uma desfilante tetra nação.

Todos brasileiramente impunes?

Todos oriundos filhos da pátria" ("Outros Orfeus" página 74)

Muitos são os nomes próprios na poesia de Jomard, ali são muitas vezes signos herméticos, como no "Outros Orfeus". Gê Domingues é artista recifense dos marginais anos 80/90:

"Esses moços (...) querem (...) vestir, despir, comer, saborear, dançar por cima das palavras ou por dentro das performances de Gê Domingues".

Nosso poeta furtivamente esconde-se entre as árvores, ao redor da imensa catedral do saber.

Olhamos através dos seus óculos, mágicas lentes, que nos despertam.

Ele pulsa nos seus versos tantálicos na forma de prazer e na sede da responsabilidade.

Ele está além do sofrimento, no que lembra imediatamente a figura de outro socialite que fez arte: Andy Warhol, artista norte-americano, um multimídia que ficou célebre por ter dito em tom BLASÉ : "IN THE FUTURE EVERYONE WILL BE WORLD-FAMOUS FOR FIFTEEN MINUTES" (no futuro todos serão famosos por 15 minutos). Na obra de Jomard, o Brasil é Brasil em qualquer língua. Se Jomard fosse a um fazendeiro e sua obra fosse a fazenda, ela não teria cercas. O professor Jomard pode usar trajes pomposos, mas seus escritos são Arlequimacunaímicos: pulam nus, em rios, cidades e florestas de letras e desenhos, numa espécie de "justiça com as próprias mãos". E a vida é a única coisa que aquece o patriotismo em Jomard e é seu último refúgio.

Ele não exalta a pátria, ele exorta a pátria.

Animando-a, incitando-a, encorajando-a, estimulando-a sempre mais. Sempre muito.

É uma obra de fartura e petulância (no sentido da fartura de imagem e profusão da exuberância).

Bloquearam todas as saídas. Jomard escapou por uma entrada. Seus escritos são como um chapéu mágico e quem usa não sente vergonha da própria bunda.

O sofrimento para ele é: ruim, ou talvez a colheita de um carnaval na Veneza brasileira.

Sua estratégia é feita por exercícios estruturais de modelação de substituição, de repetição, numa espécie de hipnose coletiva, onde se destaca o indivíduo. Ele é o "solitário coletivo", que não consegue tirar determinada música da cabeça durante muito tempo. Como o personagem de Chaplin em "O Grande Ditador" a brincar com o globo.

No seu CD "Pop Filosofia — o que é isto?", ele deixa despido o filósofo-poeta. É uma chave, um resumo do que fez nesses 40 anos de "carreira" (se levarmos em conta seu artigo publicado pela revista "Mapa" dirigida por Glauber Rocha em 1958). Lá, o palhaço degolado gargareja:

"É preciso e urgentíssimo

Que alguém escreva

Para não salvar nada

Nem mesmo a alegria

Conto se fosse

Como se estivesse

Como se desejasse

Aproximando-se Afastando-se

Sem jamais recuar

Eu não quero nada

Porque não posso nem pretendo

Falar escreviver

A não ser como se

A não ser como sim

Como se fosse possível

Como se estivesse perto

Próximo parente próximo

Como se desejasse

A intimidade do futuro mais próximo

Como se fosse possível falar

Sem pretensão de dizer

Verdades verídicas

Verdadeiras verdadeiramente

Como se como sim

Como assim e afim

Como se desejasse

Apenas mente ou

Apenas o corpo

Do verossímil

Da verdade possível

Muito mais do que

Da verdade pretensamente

Verdadeiramente, unicamente

Do único verdadeiro

É preciso..." ("Como se fosse possível" do CD Pop Filosofia — o que é isso?)

Sem sinais de pontuação, o poema estanca em reticências. O ritmo segue uma marcação que impulsiona para um desfecho como uma estrada destruída conduz a um buraco perto do abismo.

O CD "Pop Filosofia — o que é isso?" é o resgate da marginália que Jomard revisita, resume, é Pernambuco universal. A busca da delícia para os sentidos na literatura lida pelo raio laser do CD-Player:

"O ônibus passa cheio de braços, braços de todas as cores" (em "Ônibus pela Via Drummond").

"Algo é o nome da poesia

Coisa é o nome do poema

Texto é o nome da escritura

Poética é o nome do fazer

Poeticidade é o nômade

Da outra, escritura não,

Escridura". (trecho do poema "Nome ou Nume")

NEON - LIBERALISMO

Jomard questiona os medalhões Gilberto Freyre e Ariano Suassuna:

"A proverbial sabedoria Heliocêntrica é doença Luso-Tropical ou Hemodiálise Romançal?". Volve da direita para esquerda e continua no mesmo poema.

"Morte e ressurreição

Pela fogueira das vaidades

presidenciais, Neon-Liberais

que, do consenso de Washington

não se libertarão jamais".

Panfletário astronauta/argonauta, ou Pré-Histórico camaleão de um só mote? Que mistérios tem Jomard? Conseguirá ele a eternidade? "Poesia? Primeira pessoa singular? Poesia primeira pessoa singular plural"

"Escrita amordaçada duramente em nosso corpo...

Poesia percorrida em poemação

A imprópria OBRABERTAFECHABERTA...

Letras móveis, teclas mut antes...

Câmaras ardentes

... Cenas da vida brasileira

Expoética

... Versos sujos roubados

... Transados em proezia.

... Rara rarefeita "

Para que a poesia não padeça nos cursos de Letras nem venha a morrer demente nos suplementos:

"vida mais ou menos literária escridura de poesia em particípio presente através de você, nós" (trecho do poema "Poesia Primeira Pessoa Singular Plural"), CD "Pop-Filosofia".

"Queremos menos canaviais e muitos outros carnavais sou o reverso dos poetas fingidores" (em "Leoa desnorteada")

"Piada ou Picardias da Internet ...

Popular ou pra pular...

Abismos brasilíricos...

Flores do medo sem medo...

Inexatamente...

Nada...

Carne do mundo" (trechos de "Colagens e Bricolagens Sonoras" no CD PopFilosofia).

As palavras ocupam o papel e o espaço auditivo da mente em "musicalidade indutiva e profunda". A palavra fragmenta-se sem destruir o mistério poético, "meditando o verdadeiro poeta não faz filosofia, embora, seja um filósofo intuitivamente", escreve Jomard Muniz de Britto no seu ensaio "De Poesia" publicado na citada revista "Mapa" em 1958, e continua:

"O poema será um dos lugares de habitação do ser-tema que Heidegger tão bem aprofundou (...) A palavra é tão insubstituível quanto uma nota para o músico (...) As vozes da poesia são necessariamente rítmicas (...) A palavra um ser em movimento" citando João Cabral, Jomard destaca:

"Poesia (...)

Flor!

Poesia

...

Fezes vivas que és

Cuspe, cuspe, não

Mais tão cuspe"

Aí está: As imagens afastando a monotonia. Os contrários no mesmo discurso, num "conflito fecundo entre símbolo e concretude (...) o poema se faz no silêncio", o mesmo silêncio que Jomard usa como condição de poetizar.

"O que é a vírgula, senão o mais breve silêncio?"

Suas pausas são frenéticas:

"Lula tomando

uma pinga:

— Gostaria que o Miguel

continuasse

nem bom moço

nem incendiário

mas com o sentimento do mundo

mais operário" (Jomard em "PT situações" livro "Terceira aquarela do Brasil" 82)

CONCLUSÃO

A poesia de Jomard interroga o establishment e cria uma nova realidade, toda uma "Intensa Problemática".

"É, sobre tudo, intensiva". Nela, lucidez e loucura, ausência e totalidade se iluminam e se eclipsam, sua vivência transformada em poesia cria novos compromissos, novas relações entre palavras, livrando-as do maniqueísmo estabelecido entre o que é profundo num comprometimento amoroso com o mundo.

Jomard — poeta, ser da poesia, descreve a máquina do mundo. São contradições escrevividas.


BIBLIOGRAFIA

Britto, Jomard Muniz de. Terceira Aquarela do Brasil Ed.Comunicarte — Recife/PE 1982.

Inventário de um Feudalismo Cultural Ed. Nordeste Recife/PE 1979.

Bordel Brasilírico Bordel Ed. Comunicarte Recife/PE 1992

Arrecife de Desejo Ed. Leviatã Rio de Janeiro/RJ 1994.

Outros Orfeus Ed. Blocos Rio de janeiro/RJ 1995., Jornais, revistas, CD e outras publicações.

Correio das Artes — Paraíba

O Galo — Natal/RN

Suplemento Cultural — Recife

Mapa (revista dirigida por Glauber Rocha) Salvador/BA 1958

CD "Pop Filosofia — O que é isto?" Projeto cultural JMB Recife/Brasil 96/97.

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Moisés Neto

Professor com pós-graduação em Literatura, escritor, membro da diretoria do SATED (Sindicato dos artistas e técnicos em espetáculos de diversão em Pernambuco).


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