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Rachel de Queiroz : " Memorial de Maria Moura".
Em 1992, a imortal lançou seu declarado último romance, o calhamaço "Memorial de Maria Moura" (482 páginas 11ª edição. Editora Siciliano, São Paulo,1998). Uma narrativa ágil. Uma trama cheia de aventuras folhetinescas. Rachel sempre flertou com o romance popular. Inicialmente, o romance tem três núcleos de ação: O de Maria Moura, dos primos inimigos dela e o do Padre José Maria (Beato Romão). Posteriormente surge o sub- núcleo Marialva e Valentim (com seus parentes mãe, pai e tio , no "circo"). Os últimos capítulos são narrados por Moura e pelo Beato que se joga numa aventura suicida com ela. Maria Moura mostra-se arisca desde os primeiros momentos em que aparece. Manda assassinar o padrasto que a assediava desde os tempos que a mãe dela era viva ( a mãe se enforcou no armador de rede: "Sonho com aquela cara de enforcada, a face roxa, os olhos estatelados , a ponta da língua saindo da boca" diz a sinhazinha, assim chamam Maria, cuja história se passa na época da escravidão no Brasil). A seguir, Maria trama a morte do assassino que ela mesma tinha seduzido para matar o padrasto. Enfrenta a ganância dos primos Irineu, Tonho e sua mulher Firma, já que a prima Marialva está mais interessada em fugir com um artista de circo de olhos verdes iguais aos dela. Maria incendeia sua casa no sítio Limoeiro, que fica próximo da Vila Vargem da Cruz. Foge com um bando de homens , que lembram em tudo cangaceiros. Rachel diz que se inspirou em Elisabeth I , Rainha da Inglaterra (1533-1603) para compor Maria. Após a fuga do Limoeiro, Maria e seu bando vagam pelas brenhas do sertão ao relento, sem tomar banho e comendo o que aparecesse e aparecia muito pouco. Tudo com muito respeito e dignidade: Maria é a "chefe" do bando e a maior parte dos jagunços são jovens, sem ambição e querendo "aventura", como ela mesma sugere enquanto ia se enchendo do ouro que roubava, numa espécie de farra inconseqüente, até a metade do livro. Tudo para ela vai dando certo. Arranchados com escravos fugidos , Maria se estabelece por algum tempo junto à Lagoa do Socorro. Ela e seu bando roubam e levam para lá . Junta-se ao bando o ex- padre José Maria, que recebe o nome de Beato Romão para fugir da culpa de um crime que cometeu em sua última paróquia : matou o marido de sua amante, Isabel. Rejeitada pelo marido e desejando um filho, ofereceu-se ao sacerdote, que resistiu um pouco mas terminou engravidando-a . O marido volta, esfaqueia-a e mata o bebê de seis meses no ventre da mãe. O padre, ao ver Isabel estraçalhada e o marido atacando-o com a mesma faca , quebra-lhe um banco na cabeça , matando-o. Como vemos na primeira parte da trama do livro, a autora não dá sinal de cansaço. Tudo é estimulante e vigoroso . Ao ódio que cerca Maria, seus primos e o padre sobrepõe- se o romance de Marialva( a prima de Maria) e Valentim (o artista de circo com quem ela fugiu e casou). Voltemos até o primeiro livro de Rachel, "O Quinze", escrito por uma jovem mal saída da adolescência e que foi publicado em 1930, sobre a seca de 1915, da qual Rachel também foi "retirante" (foi primeiro para o Rio de Janeiro e depois para Belém, só regressando ao Ceará em 1919), tinha então nove anos. Rachel nasceu em Fortaleza e lá ,em 1925 , concluiu o Curso Normal. Atua como jornalista de esquerda, porém em 64 Rachel apoiou o golpe militar desfechado pela direita elitista contra a esquerda radical. Em "O Quinze", alguns personagens (Chico Bento, Dona Inácia e outros, como o afilhado de Conceição, heroína da trama, moça um tanto quanto romântica que tem um namoro frustrado com seu primo Vicente), têm como cenário o flagelo da seca, a miséria absoluta de um povo sofrido e conformado. Empolgada com a literatura popular , Rachel é vigorosa narradora, recheando seus romances com o modo de viver nordestino. A vida é a coisa mais valiosa e o ouro, teoricamente, é objeto de perdição. Injustiça é resolvida na faca ou por Nosso Senhor, assim é em Maria Moura. "A linguagem direta, límpida, fluente e desafetada que, realizando o ideal dos homens de 22 , apontava um manejo seguro e adulto do idioma" , escreveu Massaud Moisés. O instrumental lingüístico que Rachel utiliza em suas narrativas culmina com o "Memorial..." . De volta ao sertão, a velha dama realiza uma obra onde resplandece todo o seu talento . Em "Memorial de Maria Moura"(92), a autora utiliza- se do discurso polifônico (várias vozes). São vários narradores, porém o que se pressente é que por trás deles esconde-se o pulso vigoroso da cearense e que os diversos narradores, dentre os quais Maria( cada capítulo carrega o nome de um deles) são como títeres da força reivindicativa de Rachel. Dentre os narradores estão: o Padre José Maria, Irineu e Tonho (primos da Moura, o primeiro solteiro; o segundo, casado com uma megera chamada Firma) e Marialva (prima de Maria que fugiu e casou com um artista de circo, Valentim ) . A participação dos diversos narradores propõe uma certa ruptura com a linearidade. Outros personagens vão ganhando destaque na trama: Duarte, meio irmão dos primos de Maria e filho da ex- escrava Rubina, ajudou Marialva a fugir ; os capangas de Maria: João Rufo, antigo e fiel empregado do Limoeiro e "padrinho" da heroína , Zé Vicente, Juco e outros. No início, Maria confessou ao Padre José Maria que ia mandar assassinar seu padrasto por ter abusado dela. Após os crimes, Maria arrancha- se com Amaro e Libânia, na Lagoa do Socorro. A miséria era absoluta. Maria assaltou umas pessoas e as coisas foram melhorando. Comida e equipamentos vão fortalecendo Maria e seu bando. Com o estilo folhetinesco nos são apresentados os colonizadores do sertão nordestino. Os que resistem agem de maneira brusca , lembrando muitas vezes um comportamento instintivo, atávico, onde o meio dita as regras. A Moura é o eixo , o ponto de convergência, símbolo do poder e da ambição. No final do livro, apenas ela e o Beato Romano narram. A narrativa em primeira pessoa vai impregnando o romance de subjetividade . Maria desafia o poder masculino . O Neo- Realismo aplicado nas narrativas de "O Quinze" e "João Miguel" (ambientados no Ceará) exibe parágrafos curtos na transcrição de atos e acontecimentos, o que também é corrente em "Maria Moura", assim como o Regionalismo que está presente nas suas peças de teatro "Lampião" e em "A Beata Maria do Egito". No romance "Caminho de Pedras" (1936), Rachel polemiza o Integralismo em oposição ao Comunismo: a narrativa em terceira pessoa vai desnudando a vida de um casal de esquerda. Outro destaque da carreira literária de Rachel são suas crônicas. Passada a ditadura Vargas, Rachel assume espírito conservador "identificando-se com a defesa passional das raízes do status quo ; roteiro que a aproxima de Gilberto Freyre, cuja presença na cultura nordestina ultrapassou de longe, a área do ensaísmo sociológico e incindiu diretamente na valorização das tradições, dos estilos de viver e pensar herdados à sociedade patriarcal. De onde a nostalgia dos bom tempo antigo que até recebeu o batismo de ciência: É a Lusotropicologia" , ensina- nos Alfredo Bosi. Além dos romances citados Rachel escreveu: "As Três Marias"(1939) , "Dôra Doralina" (1975) e "Galo de Ouro" (1986). Além do Regionalismo, outro clichê sobre Rachel é a "narrativa de cunho psicológico e/ou social". Voltemos Ao "Memorial" : "Não sei bem se sou capaz de ver sangue derramado. Nunca experimentei ver de perto o sangue dos outros; e pior será se for tirado pela minha mão". O que era mais importante para Maria, naquele ponto em que ela falou do sangue, era o ouro. Maria se acha superior aos índios e escravos, como vemos por exemplo na página 178: "...aquela negrinha ...bem que eu gostaria de ter uma bichinha daquelas para mim...e até que poderia ter pegado ela junto com as jóias". O livro tem passagens curiosas, como por exemplo, quando o padre José Maria fala sobre as lembranças: "O homem feliz é o que não tem passado. O pior dos castigos, para o qual só há pior no inferno, é a gente recordar. O passado te persegue como um cão perverso nos teus calcanhares. Não há dia claro, nem céu azul, nem esperança de futuro que resista aos assaltos da lembranças". Já Maria busca construir seu mito de mulher forte, decidida, fria e calculista, que no final vai desafiar o perigo por não dar valor à vida (tudo que conquista , deixará para Alexandre, filho de Marialva e Valentim): "Minha idéia era meter na cabeça dos cabras e do povo em geral que ninguém pode avaliar do que Maria Moura é capaz". Logo, Duarte , primo bastardo de Maria, junta-se ao bando com sua mãe, a ex- escrava Rubina (eles moravam com Irineu, Tonho e Firma ). Maria começa a fabricar pólvora com a ajuda de Duarte, que também se torna seu amante. Chega então Cirino, cujo pai paga para que ele se esconda nas terras de Maria, a fim de fugir da perseguição por causa de um crime. Cirino é louro e conquistador. "Rouba" Maria de Duarte e depois a trai por ambição, ao que Maria vai responder mandando Valentim esfaqueá-lo no coração. Maria, quando jovem, leu "A Vida do Imperador Carlos Magno e os Doze Pares da França", (um dos livros que Ariano Suassuna usa na composição do Romance d'A Pedra do Reino. Aliás, ao buscar inspiração em Elisabeth I , Rachel aproxima- se mais ainda do mestre paraibano e de sua visão mítica da história antiga européia). Maria Moura refere-se a sua Casa Forte como se fosse um castelo. Ao saber que o Beato Romano (Padre José Maria) está evangelizando seus capangas, Maria fica preocupada :" O senhor quando me procurou , não sabia qual era o nosso meio de vida? Não vá longe demais. Se minha cabocrina se converter? Virar tudo penitente e sair tocando matraca- o que é que eu faço?" Maria acha que o "Não matarás " dos mandamentos sagrados é uma coisa relativa.(p-369). Sozinha no seu quarto, Maria chora quando está longe de Cirino: "Te aquieta Maria Moura. Você não é mulher de chorar, nem mesmo escondida(...) cadê o cabecel desses homens todos, que comanda de garrucha na mão e punhal no cinto?" . Pensa, porém, em entregar tudo que tem para o amado. Observar que não mata ninguém, ela manda matar, durante todo o romance. Ao descobrir que Cirino traiu a casa forte, Maria chora com tanta fúria que chega a rasgar o lençol com os dentes (p-404). Cirino traiu Maria porque "era ruim", por dinheiro de Judas. Rachel intensifica o código de honra proposto pelo Romantismo: "O meu mal era aquela grande fraqueza por ele que eu sentia. Eu gostava de comigo chamar aquilo de amor. Mas não era amor , era pior .Não era cio (...)E eu me imaginando tão forte, tão braba . Era afronta - Era para acabar comigo(...) aquele coisinha ruim(...) solapar os alicerces do meu castelo! (...) por amor dos trinta dinheiro de Judas! E eu adorar um desgraçado desses, abri para ele o meu quarto , a minha cama, o meu corpo. Foi humilhação demais. Se ainda soubesse rezar, rezava, tão desesperada me sentia. (...) Como é que vou acabar com o Cirino, sem acabar comigo?(...) Como posso arrancar o coração para fora? Ninguém pode fazer isso e continuar vivo. E se me matasse com ele?(...) Não. Eu quero morrer na minha grandeza " , lamenta-se Maria que, resgatando Cirino da cadeia, diz : "Quem segura os presos ricos na cadeia (Cirino era rico) é o medo de serem mortos pelos inimigos, mal ponham um pé fora". Maria estava tão acostumada com a vida rude que aprendeu a comer e dormir enquanto cavalgava. Levando Cirino para o cubico ( cômodo escondido na Casa Forte, cofre e esconderijo) , depois de dias fazem amor: " Foi um amor desesperado , furioso, que doía, machucava; amor de dois inimigos, se mordendo e se ferindo, como se quisessem que aquilo acabasse em morte (...) Quanto tempo durou?- nos separamos exaustos (...) entendia que no meio daquele desadoro , que eu tinha mesmo que matar Cirino . Entre nós dois não podia mais haver solução. Se ele escapasse vinha atrás de mim para me pegar . Não ia nunca me perdoar tinha que se vingar desta hora de humilhação. Era impossível ele esquecer. Agora era ele ou eu" ( Maria obrigava-o a ficar trancado num cubículo e ameaçava-o com uma arma). "Fiquei atirada na cama , sem poder chorar, cega , surda, vazia por dentro(...) não era dor propriamente que eu sentia , era mais um estupor que me deixava dormente , numa espécie de meia morte(...) eu pensava às vezes que estava a bem dizer igual à situação de Marialva , quando servia de alvo ao marido" (Valentim era atirador de facas , treinava, no circo) "Só que o atirador de faca acertava sempre em mim, mas sem me ferir mortalmente, só me pegando pela pele me pregando na tábua, por toda a volta do meu corpo. Escorchada e sangrando , eu ficava morrendo de dor, sem contudo morrer nunca ", lamenta-se após mandar executar seu amado. Ouro, pedras preciosas, propriedades, sim, mas dinheiro de papel Maria não gosta. Quando aparece Francelino para negociar gado - o sul do país em guerra precisava da charque nordestina para alimentar soldados, Maria pretendia assaltar os negociantes - e lhe mostra uma cédula impressa em letras pretas Maria recorda:"Era muito feio. Fiquei desapontada. Pensava que dinheiro em papel era de cor, com a cara do rei, assim como a figura de santo(...) eu virei na mão a tal cédula. É. Não tinha graça nenhuma . Ainda vai levar muito tempo para aquilo ser considerado . O mais certo é que não vá pegar nunca . Quem troca ouro ou prata ou até mesmo cobre por um pedaço de papel? Você quer é sentir a moeda pesando na tua mão" . Para o último assalto, que Rachel deixa em suspenso e o leitor não saberá o que aconteceu com Maria, seu bando e o Beato Romano, na sua mais arriscada investida, quase como um suicídio coletivo- Maria não distribui riqueza com seus cabras("O povo é engraçado, cada pessoa acredita no que quer e passa adiante o que entende") , guardou tudo para si, deixando para Alexandre, filho de Marialva , sua prima carnal, tudo em testamento. "Já tinha arma ali que dava para fazer uma guerra (...) nos nossos entreveros , em caso de muita pressa, eu preferia antes deixar o dinheiro que as armas(...) arma de fogo não se compra em mão de mascate nem em barraca de feira", diz a Moura. Duarte vacila, falando da superioridade do inimigo , ao que Maria retruca: "Se eles correm a gente atira nas pernas dos cavalos, os homens rolam no chão. E quando baterem em terra, já atordoados, já se está em cima deles. Eu calculei tudo na minha cabeça. Fecho os olhos e vejo tudo como é que vai se passar". E quando o ex- amante pergunta sobre o risco de vida, ela responde: "E eu estou me importando em salvar esta desgraça de vida, Duarte?(...) Desça Deus do céu e me peça , que eu falto e faço que disse" . Já os cabras, pressentindo algo de estranho naquela última batalha, pedem que o Beato Romano vá junto na campanha :" Morrer não é nada, mas sempre se morria mais satisfeito tendo ele junto para abençoar. Pra dizer ' Jesus seja contigo' ", diz Zé Soldado, um dos principais jagunços de Maria. O padre e Maria concordam. Na partida da tropa, Duarte diz. "Ainda está na hora de mudar de idéia, Sinhá . Vai ser uma luta muito dura, com esses homens traquejados para matar. Não é briga para mulher. E se lhe matam? " . Maria responde olho no olho: "Se tiver de morrer lá, eu morro e pronto. Mas ficando aqui eu morro muito mais". E, nas duas últimas linhas da narrativa (do romance), Maria arremata :"Saí na frente, num trote largo. Só mais adiante segurei as rédeas , diminuí o passo do cavalo, para os homens poderem me acompanhar". E Rachel de Queiroz localiza o tempo em que concluiu, com maestria, seu último romance, este "Memorial de Maria Moura" : Rio 22 de fevereiro de 1992- onze da manhã. |
Professor com pós-graduação em Literatura, escritor, membro da diretoria do SATED (Sindicato dos artistas e técnicos em espetáculos de diversão em Pernambuco). |