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Num dos seus livros encontramos a seguinte epígrafe: "Intuitivamente eu me agarro ao abismo" (Murilo Mendes). Existe um certo fascínio na obra de Carrero em retratar a decadência humana em sua busca de esperança. A desgraça psíquica afeta os personagens movidos por seus fantasmas interiores, agindo como irracionais. Três personagens dominam a narrativa em terceira pessoa de "Sombra Severa" :
JUDAS - Irmão mais moço de Abel. Prepara um caixão e pede que o irmão se finja de morto enquanto ele" despista" seus perseguidores. Na verdade, Judas odeia o irmão e vai terminar por esfaqueá-lo, dizer que ele morreu num acidente, casar com a mulher que o irmão raptara( Dina). ABEL - É perseguido pelos irmãos da mulher que ama. Aceita fingir-se de morto no caixão. Enquanto isso, Judas aproveita para violentar sua mulher dentro da capela, na fazenda JATI, de propriedade de ambos. DINA - Filha de Sara e Adão, irmã de Jordão( Carrero adora nomes bíblicos). Depois de casada com Judas, assume a identidade do seu amado assassinado, Abel, criando inclusive um clima de incesto. Resumo: A inveja e o fratricídio permeiam esta versão da história de Caim e Abel. Judas é obscurecido pela sombra do irmão , Abel, o "bom", que não o deixará em paz nem depois de morto, já que reaparece na figura de Dina travestida. Merece destaque a fúria exposta pelo narrador quando descreve a morte do carneiro que Abel ganhara do padrinho e que Judas, morrendo de inveja, esfaqueia e queima o bicho. Há algo de mórbido em Raimundo Carrero. Algo de "casmurro" em vários de seus personagens. Quase não há diálogo, o discurso indireto apossa-se da trama conduzindo a juízos sobre : DEUS - (página ll4) "...era um ser incrível cercado de solidão- a solidão dos abandonados da sorte, dos miseráveis que estendem latas vazias pelas ruas, das mulheres que, enlouquecidas andam sujas pelas estradas. A solidão do esquecimento completo e absoluto". AMOR - " O amor é a inveja do outro: ama-se para roubar do outro a parte que lhe falta" (P- 56) . CONCLUSÃO: No final, como numa imensa alegoria, um bando de cães famintos invadem a casa de Dina e Judas, ela os afasta. A seguir, vem a metamorfose definitiva de Dina em Abel, de quem ela assume os trajes, o corte de cabelo e ...a identidade. Judas tranca-se no quarto e Dina (Abel?) encara a luz do sol. 2.A DUPLA FACE DO BARALHO Esta novela de Carrero é ambientada em Santo Antônio do Salgueiro (Salgueiro, cidade pernambucana onde nasceu) , onde o Comissário Felix Gurgel vive e narra , de forma sombria, a sua existência: "Estou aqui sentado na cadeira de balanço em frente à minha casa nesta cidade Santo Antônio do Salgueiro, esperando a morte chegar". Regenerar-se, refazer a vida (como Paulo Honório, de "São Bernardo", ou Bentinho de "Dom Casmurro", com quem Gurgel mantém semelhanças), são as metas do narrador que de CARCEREIRO PASSOU A COMISSÁRIO : "Quem entrar aqui e disser que não apanhou, volta e apanha". Sentia-se alegre em ser da polícia e decidir a liberdade dos outros. Humilha jovens idealistas, inclusive um que no futuro seria prefeito e teria Gurgel como subalterno. Casos curiosos permeiam esta narrativa: Gurgel recebe um homem que traz a esposa amarrada pelo pescoço e pede "um atestado" , pois sabe que a mulher o traiu. Gurgel prende-a, e na hora de espancá-la, torna-se...seu amante! Convive com um enteado, Camilo, a quem trata como filho. Em seu sadismo, mata barbaramente os pássaros do rapaz(símbolos da vida e harmonia plena). De esquerdista a cigano, Carrero usa uma linguagem simples. Seu mundo é de violência, de individualismo. Seus personagens trazem algo de muito selvagem em suas relações sado-masoquistas. Esta novela foi escrita na época do fim da URSS e da queda do Muro de Berlim. Carrero, em sonhos, previu a própria morte. 3.O SENHOR DOS SONHOS (Romance de 1986) "o caminho da vida pode ser o da liberdade, porém nos extraviamos." O velho Domingos de Oliveira Olímpio, protagonista, misto de melancólico e irônico, humilde sorridente, amante da vida e dos animais, nunca reclamava de nada. Em Salgueiro, onde morava, luta contra a miséria e a injustiça, sacrifica-se pelos oprimidos. Por causa de um porco que ia ser morto, apanha de um sujeito forte: " Como é possível estar indiferente diante da dilaceração e da tortura?" . Alegoria sobre a maldade dos homens que têm o poder de fazer o que querem, enquanto os miseráveis são como " restos humanos que se amontoam em ossos, sangue, músculos e nervos, insistindo em viver." Na eleição para prefeito, Venâncio, irmão mais novo do então prefeito Anselmo Cruz, representa a continuidade, e a oposição é feita pelo cego Tomé da farmácia. Anselmo não cuida bem dos velhos, enquanto Domingos , desafiando o poder, luta para construir um abrigo para velhos. É perseguido, tem a casa destruída, procura advogado, mas contra o Poder nada consegue. É acusado de instigar uma revolução e de ser comunista:" (...) o réu está construindo uma casa em desrespeito às leis municipais para provocar antipatia e reunir adeptos para a luta contra o poder constituído e contra a polícia" (P-79). Preso, após muita tortura , é solto , volta para sua casa destruída. O cego Tomé aproveitou a confusão e vence as eleições, mudando seu discurso popular. Domingos percebe que o cego Tomé era a continuação dos governos anteriores e decide continuar a peleja: "(...)fechou os olhos, entre os destroços, e confessou a si mesmo que a luta ia recomeçar." |
Professor com pós-graduação em Literatura, escritor, membro da diretoria do SATED (Sindicato dos artistas e técnicos em espetáculos de diversão em Pernambuco). |