Adaptação teatral de Moisés Neto sobre a obra de Machado de Assis

Publicado nos Cadernos Populares, Ano I, Nº 7, Outubro 95 — FUNDARPE — Governo do Estado de Pernambuco

Machado/Bento que esteve recebendo o público na entrada do teatro(“obrigado por ter vindo”, “Bem-vindo à minha casa”, “Sinta-se à vontade”,etc.) sobe ao palco .

DOM CASMURRO (velho)- Uma noite dessas encontrei no trem um rapaz que eu conheço de vista,ele recitou uns versos dele. Eu estava cansado,fechei os olhos umas três ou quatro vezes.Ele ficou amuado e no dia seguinte começou a chamar-me “Dom Casmurro”. Hoje muita gente me chama assim:”Dom Casmurro,domingo vou jantar com você”, “Meu caro Dom Casmurro,não cuide que o dispenso do teatro amanhã”, “Dom Casmurro vê se deixas essa caverna”.(pausa,faz pose de ironia) O “Dom” veio por ironia,para atribuir-me algo de fidalgo, e o “Casmurro” por eu ser um homem calado e pensativo.(ri) Tudo por estar cochilando!.Sem querer o meu poeta do trem deu um nome para esta história que eu vou apresentar para vocês: meu nome é Bento Santiago. (abrem-se as cortinas- à mesa estão: Dona Glória,Justina ,Cosme e José Dias) Esta é a Prima Justina ,ela diz na cara da pessoa tudo que pensa, e diz por trás também,vive procurando defeito nos outros.Já passou dos quarenta faz tempo,desde que ficou viúva vive aqui de favor,mamãe gosta,, esta é Dona Glória minha mãe,estamos em 1857 e ela tem 42 anos mas está bem conservada como vocês podem ver, apesar deste xale preto e do cabelo preso na nuca,desde que meu pai morreu que ela está assim. (olha com saudade para o tio) Este é o Tio Cosme,é advogado, trabalha no crime,suas defesas orais são perfeitas,gordo,pesado,respiração curta e parece estar com sono.É viúvo também, esta é a casa dos três viúvos.Titio quando era jovem teve muitas namoradas e se meteu em política. O tempo esfriou seu ardor político e sexual.Hoje cumpre suas obrigações e...(pisca o olho) gosta de dizer pilhérias. E este (Bento balança a cabeça com saudade e quase chora) ,este é o José Dias:chegou aqui em casa fingindo-se de médico homeopata e se agregou até hoje, todos gostam dele,tio Cosme usa-o como secretário.Primeiro ele foi contra o meu casamento com Capitu (Bento se arrepia, e diz lentamente) Ca-pi-tu .Estamos em 1857,na minha casa da rua de ...não riam...na rua de Matacavalos. Nome engraçado,não é? Este rapaz, escondido aqui, sou eu.Capitu é minha vizinha,hoje à tarde eu vou dar meu primeiro beijo na boca de uma mulher. Eu ainda não sei disso.(dirige-se para a platéia) Não estranhem:eu não morri. (aponta uma pessoa da platéia) Um dia você também ficará velho como eu e terá um álbum de família. Este é o meu álbum.Quis reconstruir minha vida.Muitos anos depois mandei derrubar esta casa e depois construí outra igual em outro lugar: no Engenho Novo.Mas chega de conversa,vamos mergulhar nesta tarde de novembro que eu nunca mais vou esquecer. (senta-se na platéia ou no palco,e observa atentamente)

JOSE DIAS- Dona Glória insiste na idéia de meter nosso Bentinho no seminário? Já está passando da hora e pode haver dificuldade.
GLORIA- Que dificuldade?
JOSE DIAS- Uma grande dificuldade( levanta-se e vê se tem alguém escutando .Volta e confidencia) Os nossos vizinhos...
GLÓRIA- Nossos vizinhos? A gente do Pádua?
JUSTINA- Sempre achei que havia algo de errado com essa gente.
COSME- (lendo o jornal) Justina,faça-me o favor ! O que é que tem o Pádua ,José Dias.
JOSE DIAS- Há algum tempo eu estou para dizer isto:Bentinho anda metido nos cantos com a filha do Pádua
JUSTINA- oh! Eu sabia que aquela menina não ia dar para boa coisa. Aqueles olhinhos dela nunca, nunca, me enganaram. Aquele jeitinho dela de...de...
COSME- Cigana.Você não se cansa de ficar falando mal dos outros?
JUSTINA- Capitu é uma dissimulada.Ela se finge de boazinha, para dar o golpe porque Bentinho é rico e ela é pobre. A verdade é esta.O pai está passando por dificuldades financeiras e é um palerma. Aquela menina tem sangue ruim. Eu não confio nela.
COSME- Justina ,por favor, economize seu verbo, sim?(volta-se para o jornal, desinteressado da conversa)
GLORIA- Nunca vi os dois se escondendo para “namorar”
Jose dias-É modo de falar.(pausa) Em segredinhos, pelos cantos,sempre juntos.Bentinho quase não sai de lá
JUSTINA- E a menina é uma desmiolada...
JOSE DIAS- O pai faz que não vê
JUSTINA- Quer que a filha engravide,provavelmente.Imagine se o neto sair igual a ele:baixo,gordo, pernas e braços curtos,parece uma tartaruga,aliás ,este é o apelido dele,vocês sabem...
GLORIA- (horrorizada ) Jus-ti-na!
JOSE DIAS- Compreendo seu espanto.Para a senhora todos parecem bons...
GLORIA- Tenho visto os dois brincando e nunca vi nada que faça desconfiar.
JUSTINA- Bentinho tem 15 anos, Capitu completou 14 a semana passada
GLORIA- São crianças. Não acha mano Cosme?
COSME- Ora. Eles se divertem ,eu me divirto.Que há de mal nisso?.José Dias, deixe de tolices e vamos jogar um pouco.
JOSE DIAS- Creia que eu não falei senão depois de muito examinar
GLORIA- Meu filho vai ser padre. Eu fiz uma promessa antes dele nascer. A ida dele para o seminário já está acertada.
COSME- Olhe cá mana Glória:há mesmo necessidade de enfiar o menino no meio dos padres? Você não precisa cumprir uma promessa desse tipo.
GLORIA-Se eu não tivesse feito a promessa(chora) ,talvez ele nem tivesse nascido.
JUSTINA- Calma, Glória,calma.Não há de ser nada.Nós vamos dar um jeito nisso. Não se preocupe.
(Aparece Capitulina : toca uma música inesquecível,bem suave e há um certo perfume no ar, a roupa de Capitu tem de ser muito perfumada, a platéia tem de perceber isto. O velho levanta-se e diz para a platéia)
DOM CASMURRO- Esta é Capitu:Minha primeira namorada,minha esposa, mãe do menino que eu pensei que era meu filho.(Capitu aproxima-se de Bentinho)
BENTO- Eu tenho uma coisa para lhe contar Capitu.
CAPITU- Hoje você está mais bonito do que nunca.Que cabelos lindos.
BENTO- É sério
CAPITU- Eu sonhei com você novamente esta noite, estávamos dançando
BENTO- Dançando? Onde?
CAPITU- Na lua...E apareciam uns anjos que perguntavam nossos nomes para dar a outros anjos que acabavam de nascer(pega nas mãos dele.Senta-se e entrega uma escova,ele começa a pentear-lhe os cabelos) .
CASMURRO- (na platéia) Eu acordava pensando em Capitu,tremia quando ouvia seus passos, até na missa eu só pensava nela.Nós nos amávamos!
CAPITU- Vamos ver o grande cabeleireiro (ela se vira para ele e se oferece para um beijo)
CASMURRO- Ela ofereceu os lábios e eu desci os meus e...(Capitu e Bentinho se beijam ardorosamente) Foi a sensação mais gostosa que eu já senti. Foi como uma vertigem.
CAPITU- (recompondo-se)Você disse que ia me contar alguma novidade o que foi?
BENTO- É sobre a minha ida para o convento.
CAPITU- Não quero nem saber!(brinca) Já pensou você ...um padre! Rezando missa? Não dá para acreditar. (pausa)E eu? Onde é que eu fico nessa história?
BENTO- José Dias disse a mamãe que estamos namorando, prima Justina
CAPITU – (ri e zombando imita um padre) Não entre para o convento, meu filho. Case e gere mais um pecador. E para purgar seus pecados reze mil ave-marias!
BENTO - É sério, Capitu! Já está tudo combinado.
CAPITU - Maricas! É o que você é. Um maricas. Grudado à saia de sua mãe! Frouxo! Só agradar sua mãe é o que interessa, não é? Pois se é assim, é melhor mesmo que a gente nunca mais se veja! Eu juro. Nunca mais vou olhar sua cara. Seu falso! Eu lhe dou o melhor que eu tenho e você? Hein? Você o que dá em troca? Hein? Você...

BENTO - Acalme-se. Dentro de pouco tempo eu volto...

CAPITU - Não vou gastar minha juventude esperando você. Ah, isso não. Cansei de ficar lhe esperando, Bentinho.

BENTO - Eu ainda nem fui para o seminário e você já está assim.

CAPITU - Olha. Nada disso interessa. Tem muita gente, aqui mesmo, na rua de Matacavalos, que está interessada em namorar comigo...

BENTO - Você gosta de mim. Você me ensinou o que é amor. O mundo para mim não teria sentido sem você. (Tenta beijá-la, ela foge)

CAPITU - Nãão!

BENTO - Vou para o seminário para satisfazer minha mãe... a promessa que ela fez, você sabe...

CAPITU - Ela nem se lembrava mais. Você é quem fica insistindo. Parece que é doido. Ora bolas!

BENTO - Foi José Dias.

CAPITU - Aquele agregado. Ele nunca foi com a minha cara. Ele desconfia do nosso namoro.

BENTO - Ele é meu amigo. É como se fosse da família. Além do mais, tem a Prima Justina que vive lembrando a promessa que mamãe fez e o Tio Cosme, esse nem tanto, mas a Prima Justina, puxa vida...

CAPITU - Uma "promessazinha" feita num momento de desespero!

BENTO - Êpa! Não é bem assim. Veja! Minha mãe tinha perdido um filho e não tinha esperanças de ter outro. Estava doente...

CAPITU - Aí ela fez uma promessa para você cumprir, sei.

BENTO - Prometeu entregar um padre ao mundo.

CAPITU - E o agregado José Dias, que é que ele acha disto tudo?

BENTO - Ele vai tentar convencer mamãe de que eu não tenho vocação religiosa.

CAPITU - A troco de quê?

BENTO - Quer me levar para conhecer a Europa. Mamãe pagaria tudo.

CAPITU - Aquele interesseiro.

BENTO - Passo três meses no convento, vão notar que eu não tenho vocação, aí...

CAPITU - Três meses? Não agüento.

BENTO - Não podemos nos casar. Somos muito jovens.

CAPITU - E daí? O amor não tem idade. (Ela arregala os olhos)

BENTO - José Dias quer levar minha mãe até Roma para pedir ao Papa a anulação da Promessa.

CAPITU — Aposto que, se você tivesse de escolher entre mim e sua mãe, escolheria sua mãe. (Chora)
BENTO- CAPITU!
CAPITU- Você vai me esquecer!

BENTO - Nunca!

CAPITU – E ...(bem dramática e chantagista) se eu... morrer? De saudades talvez... ou de alguma doença

BENTO - Nem assim eu colocaria alguém no seu lugar...

CAPITU - Nem a Sancha?

BENTO – Sancha? (ri) Capitu: Eu não tenho o menor interesse pela sua colega de escola. Não me diga que você tem ciúmes de mim com aquela menina?!

CAPITU - Pois tenho mesmo. Vejo você de conversinhas com ela...

BENTO - Nada disso. Cada minuto que eu passar no convento será pensando em você.

CAPITU - Depois das surras que você vai levar, você vai me esquecer.

BENTO - Surras? Que surras?

CAPITU - Sim. Dizem que os padres aplicam castigos vigorosos àqueles que profanam os sagrados mandamentos.

BENTO - Que mandamentos? Os de Moisés (Ri)

CAPITU - Como você é lindo! O rapaz mais bonito do mundo. (Beija-o. Morde os lábios dele)

BENTO - Ai! Você me mordeu, olha, tá sangrando.

CAPITU - Se você me ama não deveria sentir dor. Se sente é porque não me ama. Eu quero você só para mim.

BENTO - Bem que Prima Justina disse que você parece cigana.

CAPITU - Aquela vive procurando defeitos nos outros e quando não encontra, deixa a suspeita no ar; porque se a pessoa cometer erro no futuro ela diz: "Não disse?"

BENTO - Cada um com seu jeito...

CAPITU - Três viúvos dentro de uma casa e mais aquele solteirão do José Dias, não sei como você agüenta...

BENTO - Você hoje está bem afiadinha, hein?

CAPITU - Esta vida é como uma grande comédia.

BENTO - Uma ópera: Deus é o poeta. Satanás o autor da música e maestro promissor. O barulho dos copos, da natureza, tudo é música.

CAPITU - Jura que só casa se for comigo?(pausa) Aliás:Case comigo! Promete?
BENTO- E o seminário?
CAPITU- Carola! Papa-missas! Beata! (das coxias vem o pregão das cocadas: “Chora menina,chora/ Chora porque não tem/ Vintém,/Chora menina pra comprar cocada” - Entra um preto vendedor de cocadas e oferece algumas ao casal)
VENDEDOR(um preto escravo tentando ganhar um trocado,para si ou para o dono)- Sinhazinha qué cocada hoje? Qué?
CAPITU- Não.
VENDEDOR- Cocadinha ta boa.
CAPITU- Vá-se embora.
VENDEDOR- Sinhazinha tá amuada?
BENTO- (tira dinheiro do bolso) Dê-me cá . (O preto sai cantando,Bento oferece a Capitu que rejeita, ridicularizando-º Ele guarda as cocadas no bolso)
CASMURRO – Em meio da crise,eu conservava um canto para as cocadas. Naquele dia comi as duas, sozinho.
BENTO- Olha :cuidado.Parece que tem alguém chegando.
JUSTINA – (aparecendo) Bentinho!(resmunga) Ah, meu Deus lá estão aqueles dois se agarrando novamente. Isto não vai acabar bem. (pausa) Bento Santiago! (Ela não enxerga direito)

BENTO - Já vou, prima. Espera aí.

JUSTINA - Mas o quê? Já não sabes que têm que se cumprir as refeições no horário? E de mais a mais já estás um rapazola para ficares de namoricos no quintal. E tu, Capitu, pensas que não te vejo? Te vejo e muito bem daqui! Não penses que me enganas, não! Estou cá de olhos bem abertos! Ó! (Abre um olho com a ponta do dedo indicador)

CAPITU - (Diz baixinho)Nossa, a jararaca está cuspindo fogo. Puxa, que dragão! Cala a boca, arara! (Capitu sussurra tudo isso, é claro!)

JUSTINA - O que foi que você disse?

CAPITU - Que o Bentinho já vai, dona Justina, que o Bentinho já vai!

JUSTINA - Não entra para comer uns bolinhos de fubá, Capitu?

CAPITU - Obrigada. Não posso. Vou dormir hoje na casa de Sancha. Ela está doente e o pai dela pediu-me para cuidar dela. (Olha para Bento)

BENTO - Então a gente só se vê...

CAPITU - Não sei. Escreva para mim. Até logo, Dona Justina.

JUSTINA - Até logo, e desculpe pela brincadeira. Apareça amanhã, consegui uns fios ótimos. Podemos fazer um bordado.

CAPITU - Se a Sancha melhorar... virei com prazer. (Justina concorda) Até mais. Boa sorte, Bentinho. (sai)
BENTO- Prima Justina, a senhora era capaz de uma coisa?
JUSTINA- De quê?
BENTO- Era capaz de ...Suponha que eu não gostasse de ser padre...a senhora podia pedir a mamãe...
JUSTINA- Isso não;prima Glória tem esse negócio firme na cabeça, e não há nada no mundo que lhe faça mudar de resolução,só o tempo.Você ainda era muito pequeno e ela já contava isso a todas as pessoas da nossa amizade,ou só conhecidas.Mas se ela me perguntar eu direi:”Prima Glória eu penso que, se ele gosta de ser padre,pode ir;mas, se não gosta, o melhor é ficar”.(vão até a mesa.Bento fica com José Dias,Justina sai)
BENTO-José Dias,o senhor só quer o meu benefício,Não é?
JOSE DIAS- Sim ,meu filho.Devo muitos favores a sua família.Gostava muito do seu pai,tenho você como um filho.
BENTO- Peço-lhe então um favor.
JOSE DIAS- Um favor? Mande então,ordene,que é?
BENTO- Mamãe...
JOSE DIAS- Mamãe quê? Que é que tem mamãe?
BENTO- Mamãe quer que eu seja padre,mas eu não posso ser padre.Não posso, não tenho jeito,não gosto da vida de padre.Estou pronto para o que ela quiser. Mamãe sabe que eu faço tudo que ela manda.Estou pronto a ser o que for que ela quiser, até condutor de ônibus.Padre não, não posso ser padre. A carreira é bonita mas não é para mim.(pausa) Conto como senhor para salvar-me.
JOSE DIAS- Mas que posso eu fazer?
BENTO- Se o senhor quiser
JOSE DIAS- Se eu quiser? Mas que outra coisa quero eu,senão servi-lo?Que desejo senão que seja feliz,como merece?
BENTO- Olhe não é por vadiação.Estou pronto para tudo ;se ela quiser que eu estude leis vou para São Paulo...
JOSE DIAS- Para lhe provar que não há falta de vontade,irei falar com sua mãe.Não prometo vencer,mas lutar.(tem uma idéia). Por que você não pede para estudar na Europa.Lembra que falamos sobre isso?(interesseiro)Eu podia ir junto, para tomar conta de você,guiar negócios,papéis,matrículas,hospedarias. Oh! As leis são belíssimas.(sonhador) Estamos a bordo! (visualiza) Europa nos espera! (entra tio Cosme)
COSME- José Dias, você podia me arrumar um pouco daquele remédio homeopático para o fígado? Acho que exagerei no vinho ontem...
JOSE DIAS- Claro meu senhor ,claro. A homeopatia é a salvação do mundo. Isso faz-me lembrar de quando cheguei a esta casa.Eu era um charlatão. Mas graças ao meu bom Jesus me recuperei a tempo daquela farsa que tive de inventar para sobreviver. Mas a verdade é que às vezes meus remédios funcionavam muito bem.

TIO COSME – (sentando-se)A vida é assim mesmo, José Dias: Veja o Brasil do jeito que está: corrupção por todos os lados. O que vale é experiência, meu caro. Mas eu acho que este Império não se sustenta. O povo quer a cabeça do Imperador, mas eu só tiro o retrato dele do meu gabinete quando me mandarem um ofício pedindo isto.

JOSE DIAS - No que justissimamente lhe apóio. Mas me diga: Você acha que todo mundo tem seu preço? Todos se corrompem?

COSME - Uns por menos, outros por mais. Mas todos se vendem.

JOSE DIAS - Cachorríssimos todos.

JUSTINA – (entrando e ajeitando a toalha da mesa) Vocês dois não param de falar. Que coisa. Cadê Glória?

JOSE DIAS - Dona Glória estava ao toucador.

COSME - Justina, você viu aquele meu terno azul?

JUSTINA - Sim, Cosme, a negra estava a batê-lo na pedra de lavar ontem de manhã, tinha uma mancha de batom que não largava.(pausa) Ah! Aí está ela. Prima que cara é essa?

D. GLÓRIA –(entrando) Estava no quarto a pensar no problema do Pádua, o pai de Capitu.

JUSTINA – Ah! O tartaruga...
GLÓRIA- Não fale assim
COSME- Mas que sujeito teimoso o Pádua. Nisso a filha parece com ele.

D. GLÓRIA - Ele devia aceitar dinheiro emprestado, mas prefere a morte.

JUSTINA - Foi substituir alguém na Prefeitura e pensou que era para sempre, começou a esbanjar. Taí: o sujeito voltou e ele ficou a ver navios.

COSME - Vou ter uma conversa séria com ele.

JOSE DIAS - Tem que ser uma conversa seríssima. O homem está pensando em suicídio por causa das dívidas.

JUSTINA - Parece uma criança. Mas vamos ao jantar.

GLÓRIA - Você tem comido tão pouco, meu filho. Que há?

JUSTINA - Fica comendo estas porcarias que estes negros vendem pelas ruas, estas cocadas vão acabar com seus dentes, você vai ver. "Cocadas". Que nome mais ridículo. E o pregão? Já viu, Glória? Eles passam cantando feito uns diabinhos atentando as crianças...

BENTO - Não tenho fome. E não sou mais nenhuma criança.

GLÓRIA - Que isto não lhe impeça de comer. Não fique triste, Bentinho, você vai ter uma bela carreira religiosa.

BENTO - Não tenho vocação.

GLÓRIA - Isto vem com o tempo. Temos que cumprir a promessa, devemos fazê-lo padre. Prometi um padre a Deus.

JOSE DIAS - Nem o Papa faria a senhora esquecer esta promessa, D. Glória?

GLÓRIA - Bem, mas o Papa nunca viria a esta casa.

JOSE DIAS - Um sacerdócio sem vocação não é bom.

GLÓRIA - Há de se comprovar a vocação do meu filho. Adorava missa quando era pequeno.

BENTO - Coisas de criança, mamãe. Ih! Que vergonha.

JUSTINA - Vergonha? De amar Jesus, meu filho? Que coisa!

BENTO - Hei de rezar mil padre-nossos e mil ave-marias, pedindo a Deus que me livre de ser padre.

GLÓRIA - Que contradição!

JOSE DIAS - Calma.

BENTO - Faço o que mamãe quiser que eu faça.

JUSTINA - Vamos lá dentro apressar o jantar, Glória. (Saem)

COSME - Bentinho, você não quer ir para o convento por causa de Capitu, não é?

BENTO - O senhor acha que Capitu é uma... boa garota? Hein, tio?

COSME - Acho que ela daria uma boa esposa... no futuro. E você, José Dias?

JOSE DIAS - Quer a verdade?

COSME - José Dias, por favor.

JOSÉ - Ela tem os olhos oblíquos... dissimulados...

BENTO - Para mim parecem olhos de ressaca, de quando o mar bate na praia... uma força que arrasta tudo para dentro... para não ser arrastado eu me agarro às orelhas, aos braços dela, aos cabelos. Eu estou apaixonado. Sim!

JOSE DIAS - Isto é seríssimo.

COSME - Para tudo tem um jeito. (Entram Glória e Justina)

GLÓRIA - Por que a conversa parou quando entramos?

BENTO - Nada, mamãe. Nada mesmo.

COSME - José Dias, fiel secretário, amanhã temos audiência no tribunal.

JOSE DIAS - Adoro me sentir útil, tira-me o peso de ser um agregado.

GLÓRIA - Você é quase um parente.

JOSE DIAS - Obrigado.

BENTO - Mamãe, posso ir para o meu quarto? Arrumar minhas coisas?

GLÓRIA - Vá, Bentinho. Vá. (Surpresa, triste). Você faz um lanche mais tarde. (Bento sai). José Dias, tenho que conversar com você sobre a contabilidade da casa, tem uns negros que eu quero vender, outros alforriar, despesas, investimentos. Temos que organizar tudo, pois o ano está para acabar e precisamos de um balanço.


(Escurece. Cena do Convento: Escobar e Bentinho. O seminário)

BENTO – Pois é senhor Ezequiel de Souza Escobar,meu querido colega neste(pausa) seminário, (tosse) esta é a minha estória. Você que é mais velho do que eu 3 anos e é filho de advogado, diga-me : Eu tenho vocação para trabalhar com leis? Conseguiria um bom emprego lá por Curitiba...
ESCOBAR- Com o dinheiro que sua família tem , você será um bom profissional em qualquer lugar,basta dedicar-se.
CASMURRO- (tossindo na platéia) Escobar é dessas pessoas que não olha dentro do olho de ninguém,não fala claro nem seguido.Dá aquele tipo de aperto de mão que mal toca a outra e puxa logo. Vocês conhecem gente assim. Não conhecem? Outra coisa:ele tinha um sorriso instantâneo. Ele ria muito e se mexia bem depressa. Praticava esportes.(pausa) Abriu sua alma para mim, desde a porta da rua até ao fundo do quintal. Naquela época eu não era “Casmurro”, nem “Dom Casmurro”.

ESCOBAR - Agradeço muito a confiança. Eu também não quero ser padre. Quero ser comerciante, isso é o que eu quero. Se minha família tivesse a fortuna que a sua tem.

BENTO - Não é bem uma fortuna, Escobar...

ESCOBAR - Comparada a do meu pai; é. Você é rico, sim, Bentinho.

BENTO - Não é bom que a gente ande muito junto. É proibida amizade excessiva entre dois alunos, você sabe.

ESCOBAR - Não agüento mais.

BENTO - Trancados aqui não podemos sequer olhar as estrelas.

ESCOBAR - Olhe para baixo. Veja os vaga-lumes do pátio.

BENTO - Você é um otimista, Escobar. Por isso mamãe simpatizou com você quando passamos aquelas férias lá. A Sancha também se enamorou, eu vi.

ESCOBAR - Ela é bonitinha. Eu namoraria com ela... quem sabe... me casaria. Já estou convencendo papai de que não foi tempo perdido aqui. Estudei com bons professores.
BENTO- Não pode ter melhores estudos que os que fizer aqui. “Para a viagem da existência” ,como disse José Dias.
ESCOBAR- Então fique você por aqui!
BENTO- Não quero saber dos santos óleos da teologia;desejo sair daqui o mais cedo que puder,ou já...
ESCOBAR- Finja-se de doente! (pausa) Você pode tossir.
BENTO- Tossir?
ESCOBAR- Uma tossezinha seca...algum fastio...e assim, aos poucos, notarão que o seminário não está lhe fazendo bem.(ri,cínico) Há meses que desconfio do seu peito. Em pequeno você teve febres e uma ronqueira. Dias há em que está mais descorado.(pausa) Se a tosse há de vir de verdade, melhor é ...apressá-la! E correr para os braços,abraços e beijos da sua “Capituzinha” querida. Não é ?
BENTO- José Dias só fez aumentar os meus ciúmes:Disse que ela anda de brincadeiras com os meninos da vizinhança. “Procurando algum que se case com ela”. Isso é coisa que se diga a uma pessoa na situação em que me encontro? (pausa) Sábado eu estava conversando com ela, passou um jovem a cavalo:olhou com interesse para Capitu e ela ,de certa forma correspondeu àquele olhar. (fica agitado, coloca a mão sobre o ombro de Escobar) Escobar, meu amigo: eu só penso em Capitu o dia todo.(pausa) De todas as maneiras.
ESCOBAR- Eu sei. Mas procure controlar-se. Você ainda vai esperar alguns anos até o casamento.(pausa) E a doença de sua mãe? Como ela estava neste último fim de semana quando você a visitou? Melhorou?
BENTO- Sim. Capitu ajudou muito. Tia Justina disse que era por interesse.
ESCOBAR- Bajular a mãe e casar com o filho,ficar rica.
BENTO- Mamãe,graças a Deus está melhor.
ESCOBAR- Se sua mãe aceitasse eu casaria com ela.
BENTO- Não brinque Escobar. (pausa) A propósito: Vou pedir a mamãe para lhe emprestar dinheiro, para que você possa abrir um negócio. Você tem tino.

ESCOBAR – É claro que tenho. Com dinheiro na mão ...ah! Vou enriquecer em dois anos, pode crer: é barbada. As mulheres todas cairão aos meus pés! Bonito e forte. Ainda por cima rico! Ah! Já conheci umas meninas do teatro,umas coristas. Bentinho, vou te contar!

BENTO – Quero ir para São Paulo estudar... quero ser advogado. São somente alguns anos e depois, vou me casar com Capitu. Teremos uma casa linda ,filhos e uma felicidade completa.O seu plano não pode falhar : Adotar uma criança e fazê-la padre e assim cumprir a promessa. Como não pensei nisso?

ESCOBAR- O dinheiro resolve muita coisa. E tem tanta criança com vocação para padre. Por que não financiar os estudos de alguém. Dona Glória vai gostar disso e assim cumprirá a promessa. Não é ótimo?

BENTO – É perfeito. (pausa)Ano que vem estamos livres e você vai conhecer melhor a (insinuante) Sancha e, quem sabe?... serão felizes casados.

ESCOBAR - Você também será feliz, Bentinho, é o que desejo para o meu melhor amigo. Você vai ser padrinho do meu primeiro filho.

BENTO - E você do meu. Tio Cosme gosta muito de você,José Dias também. (saem abraçados)

CASMURRO- Minha mãe hesitou um pouco mas acabou cedendo..Adotamos um órfão e o encaminhamos ao seminário. Foi fácil. (pausa) Lá estou eu aos 17 anos: metade homem,metade menino.A petulância e o atrevimento estavam no meu sangue. As meninas me achavam lindo. Vamos apressar esta história 18,19,20,21;aos 22 anos ,eu já era bacharel em direito (pausa). O tempo só fez esquentar a minha relação com Capitu.

JUSTINA - Olhe, ele vem subindo as escadas. (Bento entra)

COSME - O Dr. Bento.

JOSE DIAS - Formado em Direito na Faculdade de São Paulo.

JUSTINA - Parece que foi ontem que era uma criança; agora, um advogado.

COSME - Você está ficando velha, Justina.

GLÓRIA - Meu Deus! Há 5 anos! Estou velha de tanta saudade. Mano Cosme, ele não está a cara do pai?

COSME - Sim, tem alguma coisa: os olhos, a disposição do rosto. É o pai, um pouco mais moderno. E diga-me agora, mana Glória: não foi melhor que ele não teimasse em ser padre? Veja se este peralta daria um padre capaz! Dá cá um abraço, meu sobrinho. (Abraçam-se)
BENTO - E como vai o meu substituto? O menino que mamãe adotou para transformá-lo em padre?

COSME – Todo ficou muito bom.

JOSE DIAS - Dará um ótimo sacerdote.

GLÓRIA — Hás de ir à ordenação. E eu também, é claro, se meu coração deixar.

JUSTINA - É bom, Bentinho, que te sintas na alma do outro, como se recebesses em ti mesmo a Sagração!

GLÓRIA - Justamente. (A mãe o beija)

TODOS - Viva o Dr. Bento Santiago! Viva!

CASMURRO- Escobar negociou com café,aproveitando o dinheiro que mamãe emprestou e ele restituiu logo que pôde e casou-se com Sancha, aquela amiga da minha esposa.Até prima Justina pensou em se casar novamente! Foi com um tal Dr. João da Costa, também viúvo .Casei em 1865,numa tarde de março.Chovia.Fomos passar nossa lua de mel no alto da Tijuca.São Pedro,que tem as chaves do céu,abriu-nos as portas dele,fez-nos entrar e disse: “As mulheres sejam sujeitas a seus maridos.Do mesmo modo maridos devem tratá-las com honra,elas são vasos mais fracos”.

(Toca a marcha nupcial e Bento como um fantasma sai da cena da chegada para o lugar que representa o seu lar ao lado da esposa Capitu que está um pouco triste — anos depois)

JOSÉ DIAS - Pára! Já viram como o tempo passa rápido? Menina, se a gente não tomar cuidado fica sem dizer o que quer.

BENTO - O que é?

JOSE DIAS - Só mais dois dedinhos de prosa. Sabe quem se casou com a Sancha?

JUSTINA - O Escobar! Sempre achei que ele tinha olhos de policial para cima dela. Imagine você,Bentinho, que ele pensou em namorar com sua mãe!

GLÓRIA - Que é isso, Justina?

JUSTINA - E não foi mesmo? Mas aí emprestamos o dinheiro que ele queria e pronto.

COSME - Bom menino, o Escobar...

JOSE DIAS - Boníssimo! Em 5 anos fez fortuna considerável. Eu é que sou caju chupado jogado a um canto.

BENTO - De maneira nenhuma, José Dias! Você é amigo do peito e lhe convido desde já para trabalharmos juntos. Já tenho umas causas encomendadas.

JOSE DIAS - Será um prazer.

BENTO - E minha noiva?

GLÓRIA - Capitu só quer lhe ver no dia do casamento.

BENTO - Não agüento.

COSME - Essas coisas, quanto mais suspense melhor. Fica mais gostoso.

GLÓRIA - Vocês vão ser muito felizes juntos. (Anos depois do casamento)

CASMURRO- Pobre mamãe. Acho que ela desconfiava que minha esposa não seria fiel por muito tempo. Bom, como eu estava dizendo,estávamos no nosso ninho de amor. O céu recolheu a chuva e acendeu as estrelas.Capitu quis voltar para a cidade. Estaria aborrecida de mim? Não lhe bastava estar casada entre quatro paredes e algumas árvores;precisava do resto do mundo também. O tempo ia passando e nós não tínhamos um filho. Escobar e Sancha tiveram uma filha e colocaram o nome dela Capit,em homenagem à minha esposa. Logo depois Capitu engravidou. Eu agradeci a Nossa Senhora da Conceição. E coloquei o nome do meu filho o mesmo de Escobar: Ezequiel.(pausa) Esta é a Sancha.Vamos escutar esta conversa dela com Capitu.


CAPITU - Pois eu morria de inveja de você, Sancha. Você e o Escobar, tão felizes, levando a filhinha ao passeio, ou em casa na intimidade. Mas finalmente Deus me abençoou e agora eu tenho o meu filhinho, que já está com 5 anos. (Ri) Ah! Foi uma alegria para o Bento. O Ezequiel está impossível! Sancha, nem te conto: Ontem mesmo quebrou aquele vaso que você e o Escobar nos deram de presente, aquele com o retrato de Nero.

SANCHA - Virgem! Aquilo foi idéia do Escobar! Ele disse que o Bento era admirador de Nero. O que é que você tem, Capitu? Você não está bem...

CAPITU - Olhe Sancha, eu não queria nem falar. Mas como você é minha amiga, eu vou me abrir: É o Bento. Ele anda muito esquisito!

SANCHA - Como assim?

CAPITU - Você sabe que o nosso filho Ezequiel tem mania de imitar os outros.

SANCHA - Coisa de criança.

CAPITU - Pois é, mas Bento já cismou de bater no menino, por imitar tão bem o Escobar...

SANCHA - Por isso é que você acha que ele está esquisito? Ora, vai ver que ele está estafado... nervoso, porque está trabalhando muito, Capitu, deve ser isso.

CAPITU - Não sei, não. Ele já não é mais o mesmo. Trata-me com desconfiança.

SANCHA - Você está exagerando, Capitu.

CAPITU - Se as casas dos casais fossem como as pirâmides, resistindo ao tempo...

SANCHA - Os homens são assim mesmo, Capitu. Olhe: o Escobar eu bem sei, não me é totalmente fiel. Soube a semana passada que ele teve um caso com uma corista, negócio de teatro, não sei, uma atriz ou uma bailarina... Mas eu não quis fazer escândalo. Eu tiro por menos, sabe? Acho que às vezes temos que engolir alguns sapos para mantermos nosso casamento, principalmente nos dias de hoje.

CAPITU - E você, Sancha? Você trairia seu marido?

SANCHA - Eu? Nem que ele morresse, eu me casaria de novo! Deus me livre!

CAPITU - É mesmo?

SANCHA - Você também não trairia seu marido, não é? (Capitu espeta o dedo no crochê.)

CAPITU - Ai! Claro que não. (Chupa o sangue no dedo) Claro que não! E o Bento ciumento do jeito que é, me mataria. Não quer nem que eu freqüente a sociedade de braços de fora! Ou use qualquer decote no vestido.

SANCHA - Escobar me pediu isso assim que nos casamos e eu concordei.

CAPITU - Mas meu gosto é diferente. Acho que isso não atrapalharia nossa felicidade. De tudo eu cuido, Sancha, e até economizo dinheiro! e reinvisto com o auxílio de Escobar.

SANCHA - Como é que você consegue economizar, com tudo tão caro?

CAPITU - Pois é, minha filha, economizei dez libras esterlinas.

SANCHA - Bento dizia que você é um anjo.

CAPITU - Mas ele tem ciúmes até de mim e o mar.

SANCHA - Como o Escobar está demorando, não? Já estou preocupada.

CAPITU - Não há de ser nada. Como vai a minha afilhada, a Capituzinha?

SANCHA - Ah, nem lhe conto! Uma gracinha, tão gorduchinha! Faladeira e curiosa. Travessa que só ela! O Escobar pensa em casá-la com seu filho.

CAPITU - O quê? Ele disse isso?

SANCHA - Acho que foi idéia minha. Que carreira seguirá o seu filho?

CAPITU - Ah! sei lá. Vadio, apóstolo...

SANCHA — Vadio?

CAPITU - No sentido do homem que pensa e cala.

SANCHA - Pode ser médico, ou militar.

CAPITU - Aquele não pode ver um batalhão marchando que fica louco! "Olhe o comandante, mamãe!" "O cavalo, os soldados!" O Bento até comprou uma cornetinha e uns soldadinhos de chumbo pra ele. Hum: Olha, ele fica olhando pinturas de guerra. Ontem ficou olhando um gato matar um rato e queria vê-lo comer o bichinho.

SANCHA - Ah, que nojo! Mas mudando de assunto, esta demora de Escobar está me inquietando. Vou embora. Se ele aparecer diga que o espero para o almoço.

CAPITU - Aonde ele foi?

SANCHA - Inventou de nadar. Um velho hábito dele. Pelo menos está acostumado, tem braços fortes, mas o mar está tão agitado.

CAPITU - Cuido que decidiu ficar em casa.

SANCHA - Mas marcamos aqui, precisávamos ir às compras.

CAPITU - Vou mandar um empregado levar você. (Saem) (Entra Bento pensativo).

BENTO - Não pode ser... Eu não quero acreditar... ela não teria sido capaz, nem ele (senta-se no sofá está com um chicote na mão e açoita a própria perna ferozmente. Capitu volta, ele está misterioso).

CAPITU - Ui! Que susto! Quem saiu agora daqui foi Sancha e...

BENTO - Você notou como mamãe tem tratado você ultimamente? E com que indiferença ela vem tratando o nosso filho Ezequiel?

CAPITU - Talvez ela esteja mesmo doente como diz.

BENTO - Não seria motivo. E ela vem tratando mal também o Escobar. Há algo de estranho nisso.

CAPITU - De que você está falando?

BENTO - Sancha falou sobre nossa viagem à Europa?

CAPITU - Sim. Ela já está arrumando as coisas. Vai ser ótimo! (Entra Sancha apavoradíssima)

SANCHA – Escobar...
CAPITU- O que é que tem o Escobar? Pelo amor de Deus o que aconteceu
SANCHA- O negro disse...que...ele...as ondas estava nad...nadando...quase não conseguiram retirar o corpo do...mar...meu marido.Eu não acredito...morreu afogado. Escobar... Ai meu Deus... Não! Não! Meu marido está morto! Morto. Me ajudem.

CASMURRO- Sempre gostei muito de teatro.Mas o velório de Escobar causou-me náuseas.O jeito que Capitu chorou.O interesse com tudo. Lembro de uma peça de Shakespeare,”Otelo” em que um mouro mata a esposa rica por ciúmes,ela era inocente. Capitu era culpada.Uma noite voltei de repente e encontrei Escobar na minha casa. Meu filho era em tudo parecido com ele,os modos o corpo,a fisionomia...


BENTO - (Está Casmurro) Onde você esteve?

CAPITU - Fui Levar Sancha e Capituzinha na estação. Partiram para casas de parentes no Paraná. Agradeceram o dinheiro e os cuidados. E você ganhou, ou perdeu o caso hoje?

BENTO - Perdi. Ando muito distraído.

CAPITU — O que é que lhe aflige tanto? (Ajoelha-se aos pés dele, está trêmula)

BENTO - Nada, prefiro não falar.

CAPITU - Como nada? Se você não sai mais comigo? E fica evitando nosso filho como se ele tivesse uma doença contagiosa? Que mal lhe fizemos? Diga.

BENTO - Você é inocente, Capitu? (Ele pega o pescoço dela com as duas mãos)

CAPITU - O que é que você tem? Você está me assustando!

BENTO - Talvez seja necessário que eu morra.

CAPITU — Pare com isso, pelo amor de Deus! Estou assustada.

BENTO — É muito sério: Comprei veneno, coloquei no café, não tive coragem de tomar
CAPITU- Você pensou em envenenar-se? Está louco?
BENTO- Ezequiel entrou na hora em que eu ia beber o veneno. Eu já estava me despedindo do mundo.Visitei minha família,revi lugares .(pausa) Pensei em dar o maldito café para o menino.

CAPITU —Eu não acredito (chora) O que houve? O que é que está acontecendo?

BENTO – O que está acontecendo? Você ainda pergunta? Não lhe parece óbvio demais? (pausa) Eu descobri tudo, Capitu
CAPITU- Do que você está falando?
BENTO- Por favor ! Não negue!
CAPITU- Não estou entendendo
BENTO- Pois eu vou explicar: esta criança que eu crio como filho não é meu filho. Ezequiel é filho do Escobar. Não é do meu sangue!

CAPITU — O quê?
BENTO- Quando ele foi gerado? É o que eu me pergunto.Quando?Minha mãe bem que desconfiava...
CAPITU- Mamãezinha tem ciúmes de você

BENTO - Acabemos com isso: O sinal da natureza é tão evidente: O garoto é a cara do Escobar! Eu...que fui tão amigo dele. Como vocês ousaram?(pausa) até discursei no enterro dele...

CAPITU - Você acredita nisso? E por que só agora me diz?
BENTO- Porque chegou a hora.
CAPITU- Diga logo tudo; depois do que eu ouvi, posso muito bem ouvir o resto. Não pode ser muito. Que é que lhe deu esta certeza? Ande, Bentinho: Fale. Fale! Despeça-me daqui, agora, mas me diga tudo primeiro!

BENTO - Há coisas que não se dizem.

CAPITU - Que não se dizem só a metade! Mas já que disse metade diga tudo (Confusa, acuada) conte o resto para que eu me defenda! Eu lhe peço desde já nossa separação, não posso mais...

BENTO - Nossa separação já é coisa decidida.

CAPITU - (Ri) Eu? Com o Escobar? Você tem ciúmes de um defunto? Acha que seu filho se parece com seu melhor amigo... Foi Deus quem quis assim... Não acredita na vontade de Deus?!... Mas... não falemos nisso. Não nos fica bem dizer mais nada. (Abaixa a cabeça e levanta-a transfigurada) Estou às suas ordens.

BENTO - Você Vamos para a Suíça. Lá o menino será educado. Tenho dinheiro para isso. Levaremos uma professora para ele daqui, do Brasil, lá ele aprenderá o resto. Eu estou pensando em tudo. Visitarei vocês de vez em quando. Fingiremos que estamos casados, para os daqui.
CAPITU- Um casamento de aparências.É isso que me resta?(vai até Bento.Tenta toca-lo.Ele a rejeita com ódio. Capitu sai muito triste . Talvez nesta hora os “dois” Bentos se encontrem e se abracem )

(Batem. Alguém vai atender. Capitu sai cabisbaixa. É José Dias)

JOSE DIAS - Boa tarde, meu jovem. A notícia que trago não é boa.

BENTO - Parece que uma desgraça vai abrindo as portas para outras desgraças.

JOSÉ DIAS - Sua mãe... sua mãe...

BENTO - Está morta?

JOSÉ DIAS- Está morta.

BENTO - A tristeza a levou... Ela sabia de tudo... ela desconfiou primeiro.

JOSÉ DIAS- Eu pensava que ia morrer antes, vejam como são as coisas...

BENTO - E o tio Cosme, a prima Justina? Como receberam a notícia?

JOSÉ DIAS - O Cosme está "naquela", não é meu filho? A Justina eu não sei, não tivemos tempo nem de encomendar o velório da sua mãe ainda, tive que avisar você primeiro e decidi vir pessoalmente...

BENTO - Cuidarei de tudo.

JOSÉ DIAS - Ela nos deixou a todos órfãos...

BENTO - Quero que se inscreva na lápide de minha mãe o seguinte: "Uma santa".

JOSÉ DIAS - Nomes... datas...

BENTO - Nada disso. Há de ser apenas: "Uma Santa".

JOSÉ DIAS — "Uma Santa". Eram muitas as virtudes que a finada possuía na vida, inclusive a modéstia, por isso não ficaria bem colocar o nome da sua mãe na lápide sepulcral. Os que a conheceram mandariam ali esculpir apenas isso : "Santíssima".

BENTO – Muito obrigado José Dias. Estamos planejando levar o Ezequiel para estudar na Suíça, lá ele ficará com a mãe dele durante alguns anos. Você gostaria de visitar a Europa comigo? Lembro que você queria muito na época em que eu estava no seminário. Lembra?

JOSÉ DIAS - A Europa que eu vou agora é outra, meu filho.

BENTO - Você pode pelo menos continuar me ajudando com os processos no escritório.

JOSE DIAS - Estamos cá a discutir tais coisas, mas eu bem sei como estás te sentindo.

BENTO - Estou tentando entender a dor, vou me ocupar bastante para afogá-la no fundo do meu cérebro, do meu peito.

JOSE DIAS - Há de passar meu filho, nós que continuamos vivos temos que hastear a bandeira da esperança, lutar contra as forças adversas...

BENTO - Vamos. Vamos fazer o que tem de ser feito... (saem)

CASMURRO – José Dias escrevia para Capitu,pedia que ela mandasse fotografias,desse notícias.Desistiu. Pobre José Dias :morreu sereno após uma agonia curta.O céu estava lindo,pediu que abríssemos a janela.Olhou para fora e disse “Lindíssimo!”.Foi a última palavra que proferiu neste mundo.Chorei por ele.(pausa)Prima Justina, antes de morrer quis ver Ezequiel,não teve o gosto de confirmar suas suspeitas:faleceu antes.(pausa,ponta para o rapaz do palco) Esse que entrou é Ezequiel, que durante alguns anos pensei ser meu filho. Vejam se ele não é a cara do Escobar? E agora adulto então...Juro eu preferia que este menino tivesse morrido também. Por mim ele podia pegar lepra.

(Ezequiel está sentado, esperando. Bento chega por trás, observa-o, o perfil é idêntico ao de Escobar.)

EZEQUIEL - (Impulso de se abraçar, mas controlam-se de forma patética) Boa tarde, papai. Como vai o senhor?

BENTO - Bem. Chegou quando ao Brasil? (Pausa) Resolveu me fazer uma surpresa?

EZEQUIEL - Não foi bem assim. Precisava vê-lo. Sua lembrança estava desaparecendo da minha memória, a última vez que lhe vi eu tinha 6 anos. Agora eu tenho dezenove. Mas o senhor não faz diferença dos retratos; Mamãe falava tanto no senhor, dizia que era o homem mais puro do mundo. O mais digno de ser querido. (Pausa)

BENTO - Vamos, vamos, deixe de coisa...

EZEQUIEL - Mesmo depois de morta... ela ainda estava bonita... (Olham-se sem jeito. Bento disfarça) Papai, lembra dos meus jogos de guerra?

BENTO - Pois não hei de lembrar-me?

EZEQUIEL - Cheguei agora do Egito. A expedição foi um sucesso. Estamos partindo depois para a Palestina... promessa feita a umas pessoas.

BENTO - Mulheres?

EZEQUIEL - As mulheres não entenderiam uma ruína de 30 séculos. Só se preocupam com a moda de hoje. (Pausa. Ambos estão sem jeito mesmo) Estou hospedado na casa de amigos.

BENTO - Saiba de uma coisa, Ezequiel: (Bento fica de costas para o filho) eu nunca esqueci sua mãe.

EZEQUIEL - Eu sei, meu pai, eu sei. Nem ela tampouco o esqueceu.

BENTO - Não tenhas ciúmes de tua mulher, para que ela não se meta a enganar-te com a malícia que aprender de ti...

EZEQUIEL - Adeus, papai.

BENTO - Adeus, Ezequiel.

CASMURRO- Ezequiel morreu um ano depois daquele encontro. Morreu de febre tifóide em Jerusalém e lá foi enterrado. Em sua lápide a inscrição tirada do profeta Ezequiel foi escrita em grego: "Tu eras perfeito nos teus caminhos desde o dia da tua criação"...Eu tive algumas amantes depois disso. Nenhuma me fez esquecer a primeira amada do meu coração.Talvez porque nenhuma tinha os olhos de ressaca,nem os de cigana oblíqua e dissimulada.(pausa.Vai subindo para o palco) A minha amiga e o meu maior amigo,tão queridos,quis o destino que acabassem juntando-se e enganando-me. A terra lhes seja leve! E vamos embora que já está ficando tarde. Obrigado a todos vocês pela...atenção. Até logo.




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