...Moisés Neto e seu teatro dissonante

por Carlos Bartolomeu


Recordo-me da primeira intervenção de Moisés Neto na cena pernambucana. A comunidade Carmelita comemorava quatrocentos anos de sua chegada ao Brasil. O ponto alto das comemorações foi a produção do texto de Cláudio Aguiar sobre o maior herói pernambucano e membro da ordem, o nosso Frei Caneca. Era final dos anos setenta, início da distensão... Retornava eu, à cidade do Recife, após minha rápida incursão ao mundo televisivo do Rio, onde passara pela experiência de ter convivido com os instantes iniciais do fim da rede Tupi de televisão. Encontrava-me desempregado e quis Deus dar-me a felicidade de participar da experiência de montagem cênica sobre a vida do frade pernambucano. Ao contrário de meus outros trabalhos como diretor, minha volta proporcionou-me pela primeira vez na vida, trabalhar como ator profissional. Foi lá, na épica e irônica realização de José Francisco Filho que conheci Moisés...um adolescente ainda, figurando no meio de numeroso elenco.

Certa feita, na cena do julgamento de Frei Caneca onde eu participava como acusador do mártir republicano e ele no papel de uma das testemunhas, ocorreu ao ator iniciante, a idéia de mudar o registro de voz da sua personagem, acirrando a um só tempo a tensão nos outros atores e a comicidade latente na paródia de tribunal que realizávamos. O efeito foi revelador da impostura histórica de nossas personagens. Risos nossos e do público.
Cito este ocorrido, com o fito de traduzi-lo como uma espécie de parábola sobre a época e de uma respeitosa, mas hilariante epígrafe sobre a aparição do nosso autor !

Em um de seus exercícios teatrais, O Bolo, escrito em 1986, uma frase é dita por uma das personagens: "Um monte de clichês, estamos impregnados disso " , a frase revela a continuidade daquela interveniente ação de outrora e mimetiza a cena de antes como recurso estilístico e dramático que implícita ou explicitamente desemboca em sua literatura . Naquela época em que fomos companheiros de palco sua intuição teatral teria feito par com a mordacidade. Aquela sua personagem de voz estrídula, seu expediente algo clichê, utilizando-se da cena teatral com intenção de ferir o ritmo pausado e grandiloqüente de uma encenação ou de nosso solene modo de atuar, estruturou-se de maneira atrevida e plena de humor ao longo do tempo. Como um escopo a um só tempo autodepreciativo e construtor tornou-se recorrente em sua obra.

De exercícios como A Faustina, Prazeres da Revolução, O Bolo ao precioso registro Com a Víbora no Seio, em parceria com Henrique Amaral, passando pela revista de câmara, Cleópatra, a comédia ; átimos notívagos tais como Evita-me à Cubana e Um Tostão para Isabelita ou textos mais audaciosos como Um Certo Delmiro Gouveia, Para um Amor no Recife ou a pop experiências no teatro infantil, Moisés Neto incorporou esse grito, essa postura à cena e suas intenções.

Escrevo para ser compreendido e revelar, só assim posso ter a crença de que faz sentido este ato... Mas, pode ser um duplo e ilusório ponto de vista. Lembro a todos que não sou um crítico teatral, vejo-me mais inventivo que eles: outra ilusão, talvez.

O vigente modelo de perseguição a gênios estabelecidos, de se ir a cata do original popularizado, da necessidade da última moda de clássicos (!) no nascedouro ou de bem intencionados regionalistas... iluminados, frustra as possibilidades de se deixar nascer verdadeiros criadores. Antes de mais nada, o nascimento e o desabrochar de escritores teatrais, deveria ser o primeiro passo. Ocasionalmente, aconteceria a colheita.
Nós, diretores, atores e críticos e mesmo o grande público, talvez pudéssemos nos livrar da ilusão (fatal) de apenas sermos no outro, de existirmos no estrangeiro. A verdade é que não nos visitamos com a assiduidade necessária para o conhecimento de nós mesmos. Não nos deixamos envolver pelo próximo, pelo nosso criativo irmão , primo, amigo... vizinho. O sujeito iniciante que nos oferta Conversa e Poesia. Definitivamente é aí, que nossa paciência se esvai. Corremos em retirada diante daqueles que batendo a nossa porta, nos reconhece como capazes de sinalizarmos ... Daqueles que nos oferecem a chance de conhecermos os recortes de suas interioridades.

Porque para maioria de nós é penosa essa aceitação? Para maioria de nós, sujeitos normais eles podem ser tudo menos artistas; podem até se tornar artistas. Mas, terem em si, a verdadeira chama da criação, o desejo inesgotável do fazimento...isso nós duvidamos. No caso das criativas mentes provincianas a proximidade não é um espaço de reconhecimento e avaliação, antes é o lugar do desconforto diante da individualidade que se lança corajosa.

Penso alto e na defesa daqueles que hoje se lançam e lutam por espaço. Penso e escrevo projetando muito daquilo que houve em mim, nos de agora . Penso em mim e na poesia que necessita e deve ser aceita: a de Moisés Neto.

Penso, especulo, critico: talvez, o erro maior e que se projeta em oposição a toda tentativa de veícularmos a diversidade no nosso teatro, é a maneira de instituirmos o teatro, o teatro ideal que nós sonhamos. De longe... é a idéia!

É um teatro carregado de idéias vencedoras.

Para olhos normais, não adestrados, grande parte do mérito destas idéias assume uma natural afirmação. Todavia, acredito eu, seu poder emerge de circunstâncias geográficas, de um mérito localizado entre o Tâmisa e o Sena, as margens do Tibre, ou evoca as ondas do Aquelôo.

O Capibaribe não conta ou antes conta se contaminado pelo Tietê...

Digo essas coisas todas, aceito-as como realidades de um tempo, no intuito de colocar para outros que a escritura de Moisés Neto é daquelas que deveria ser visitada. Primeiro para descobri-la, segundo para criticá-la, descartá-la ou nos deixarmos seduzir ante as suas possibilidades de espetáculo e encenação. A obsidente memória e idiossincrasia deste criador nos permite isso. Podemos sair de sua narrativa torcendo o nariz . Todavia, nela há a possibilidade de reavermos nossa imagística .Compreendemos mais o universo da criação local, suas misérias e sonhos de constelações.

A dramaturgia de Moisés Neto explora e apresenta o mundo íntimo de seu autor e de sua convivência com o mundo de nosso irrealismo teatral . Sua escritura vive disso e incorpora os efeitos e as ações desses mundos deplorando em ambos o lado insustentável e evanescente. A ação tateante de suas personagens retoma trejeitos e ridicularias do entorno risível e da precariedade de nossas construções e pretensões . Espelho quebrado, enquadra o ilusório de nossa materialidade, delimitando o espaço tragicômico do conviver, do re/criar, gritando dissonante por afeto, compreensão e palco.

Derby, 3 de abril de 2002
Carlos Bartolomeu é professor de teatro na UFPE.




©2004 Moisés Neto. Todos os direitos reservados.