...Amadora instrução

por Carlos Bartolomeu
especial para www.moisesneto.com.br



Caríssimos , o que se segue, deve ter seu sentido amparado pelo bom humor. Não há mentiras e meias verdades nesse estudo amador sobre as máscaras com as quais revestimos nossas faces e focinhos. O intuito é divertir, nunca castigar....Penso que rir é bem melhor.

O riso que pretendo despertar se ri antecipadamente de mim mesmo, embora , deva reconhecer o desfrute antecipado de rir-se de outros... E rir-se de certos TIPOS, figuras nunca obsoletas que vagueiam nosso dia a dia sociocultural , causam-me um prudente receio, um cuidado, além, é claro de uma quase mórbida necessidade de vê-los em ação, pois , só assim, posso neles compreender o disparate, o fútil e o tolamente humano de todos nós.

Dei a este estudo, o sincero e exaustivo nome de : CÔMICA E AMADORA INSTRUÇÃO COM OBJETIVO DO ESTABELECIMENTO DUMA TIPOLOGIA DAS MÁSCARAS CIRCENSES Y LOMBROSIANAS NA VIDA CULTURAL PERNAMBUCANA.

Na lista que se segue, proponho o exercício de distanciamento. Vamos nos tornar na leitura deste estudo, uma espécie de testemunhas e traçarmos uma tentativa de reconhecermos nela, a Lista, nós mesmos e aqueles que nos cercam. O abre-alas desse bloco, onde eu próprio me flagro, ora vestindo ou retirando a máscara, deverei chamá-lo de - A FIGURA DO PROMETEU DE CENA:
O Prometeu de Cena é um egresso de remota paragem, nascido do mais disparatado enxerto sócio-educacional.

Ele, de fato são eles, e são muiiiitos, aflorando como cogumelos após as chuvas de verão. Delirantes, acreditam Ter o poder nas próprias mãos. Isentos de criticidade, amam suas toscas obras com fervor fundamentalista. Afeitos sempre a por em descoberto o erro alheio, possuem uma infinita capacidade de construir teorias tolas, com o único fito de reduzir, destruir ou mesmo impedir a existência do oponente. Entenda-se por oponente, desde o pobre artista bafejado por ocasional aura de reconhecimento, aplauso ou proteção divina (!) ou aquele outro, o bambambã da teatralidade, o Everest das artes cênicas. Especulo que o extremismo dessa figura tenha sua origem na lógica da inveja.

A plasticidade de suas personalidades determinam o rigor com o qual tratam o risível , sempre refreando o espírito da diversão, a sanidade da alegria...detestam o riso, nunca se riem deles próprios. Já , quando se tratam dos outros...

Para melhor desfiarem seu mau humor contra aqueles que lhes fazem sombra, são capazes de mover céus e terras, dedicando uma eternidade de suas vidas à construção e à reinvenção do nada. Exímios na arte do subterfúgio e da sobrevivência, aportam em instituições, à frente de companhias e espaços afins com a imodéstia que lhes é peculiar, cercados por um ambíguo odor de sabetudo, vão de Meca à seca. São liberais na saliva, porém não resistem ao dinheiro público.

Secundando este primoroso bufão, enxergamos na carnavalizada caravana um novo espécime - A FIGURA DO ACOMPANHANTE DA CELEBRIDADE LOCAL.

O Acompanhante...concorda plena e exclusivamente com o que pensa a Celebridade. Detesta, no entanto, aquilo que essa apenas ironiza. É um ávido leitor dos discursos em moda, dominando o vocabulário, usos e abusos dele provenientes. Ao ouvirmos nossa figura, podemos entender quanto o domínio de um palavrório colorido de tecnicalidades convêm à construção do vazio frente à ignorância. Nosso Acompanhante é constante no hábito da leitura de orelhas, prólogos, pensamentos e epígrafes sobre artes cênicas ou artes em geral, sendo seus pareceres finamente recheados por citações cuja profundidade obedece à especificidade do nível de sua leitura. Vez por outra, desentende-se com a luz de seus horizontes, pois quase sempre aquilo de que se diz sabedor - seu conhecimento do mundo das artes - é de segunda mão ou fortemente inspirado pelo ressentimento. Nosso Acompanhante gostaria de ser ele mesmo uma celebridade. A despeito da constância em ser valete das celebridades de ocasião e das de mérito, estará fadado ao ostracismo e à mesquinhez de uma cidade que não lhe reconhece a originalidade em bem-servir, em ser servil. Para ser justo, creio que sua paga é nunca desconfiar da relação servo/patrão à qual faz jus e na qual exercita-se, num estado de perfeita emulação ao outro. Nunca é demais lembrarmos: o tipo é pegajoso, mas pode mudar de patrão e acompanhar uma opinião outra. Cuide para que não seja a sua.

Na seqüência, aparece gentil um novo tipo. A FIGURA DO SUI GENERIS.

O sui generis equivale ao mesmo que mala, indivíduo oneroso ao nosso estoque de oxigênio .Por definição: um espaçoso, sem precedentes na geografia dos hábitos culturais. Ele é uma sem alça e sem as rodinhas que viabilizariam seu curso. Com a desenvoltura de um crítico em início de carreira, esbarra em seus pares e contrários, sentindo-se guiado por mãos e angélicas sensibilidades, a descerrar qualidades auto-descobertas, prenunciando o novo de ontem. Em todo e qualquer assunto cênico sua personagem discorre, indo da tragédia babilônica ao melodrama soteropolitano. Com graça e verve ao dissertar sobre o drama napoleônico, atinge o estupor da sapiência asinina, concluindo em definitivo que estamos todos nós entregues às mãos de ingênuos, ineficazes, ociosos ,embusteiros de marca maior, as quais, nós, pessoas de gosto, deveríamos enquadrar como figurantes de As Rãs...A qualidade dessa persona de fato é secreta, embora com a leveza de caráter que lhe peculiar, pode circular em ambientes de fino trato e pouca inteligência. Encontramos muitos de sua estatura, esse sujeito pleno de graça e ambição, em corporações intelectuais, as vezes mesmo as presidindo ou sentado as suas diretorias. Constantemente os avistamos vagando à esmo em vernissages, consertos e concertos. A toda e qualquer estréia ele comparece com seu resfolegar enfadonho, definindo-se contrariamente à criação do pobre artista que caia em sua rede. No quesito da autocrítica, é um tolo imorredouro, equivalente ao seu irmão em bestialidade: o Acompanhante de Celebridades. Com ele, todo cuidado é pouco.

Em seguida, temos desenvolta : A FIGURA NOTA DE DEZ.

Sobre ela podemos afirmar, ser conveniente a mais rigorosa distância. Sua pessoa é composta de notas dissonantes de educação e sentimentalidades. Sua posição é favorável...nunca é contrária a nada, mesmo quando esse nada é mesmo um nada, uma inutilidade digna de sobrepujar qualquer recorde do Guiness.
Nota de Dez encontra sempre um jeito, uma fresta por onde se possa entrever talento e obstinação na vulgaridade, por ele logo refinada como "sutilezas de artista". Para ele tudo é talento a ser lapidado. Quase sempre, o talentoso achado é caso cr6nico de idiotismo vulgaris , de acefalia pura e simples ou pomposidade ôca. Nota de Dez é um pródigo em descobertas e paternidade. Nestes casos a tal descoberta entra na maior parte do tempo, por assim dizer, com a parte... material. Esse nosso tipo é vagosimpatico e se permite a breves afagos no focinho.

O par perfeito da figura Nota de Dez é o Nota Zero; ambos se merecem.

Por último, porém não encerrando a possível existência de outras máscaras, terríveis e risíveis, temos
- A FIGURA DO NEO TEATRAL OU O CLÓVIS DE CHUVISCO.

Com a queda do muro de Berlim e o advento da globalização, este é o tipo depositário das mais imediatas realizações do ideário up to date. Acreditando-se pós tudo, mais qualquer coisa, desfila a si mesmo e firma-se no universo da vacuidade por sua atitude pendular. Ora ridiculamente a direita, ora esquisitamente a esquerda. Dono de uma visão eminentemente pragmática firma seu estiloso savoir -faire sobre a mentalidade panis et circenses da cena pernambucana. "EU somente" é sua ideologia. Símios de diversas tonalidades comungam com esta excentricidade passadista, por serem o que são ou por acreditarem com a força de suas sazonais crenças, que não custa nada sentirem-se bôbos só mais uma vez e mais uma e...

O Neo teatral ou Clóvis de chuvisco muitas vezes, ou mesmo na maioria delas, dá certo.

Insensatamente os poderosos do dia, andando à cata de artistas para enfeite de suas festividades, lhes ofertam o ombro amigo e a bolsa insegura...e o nosso Clóvis é confundido com figura de peso intelectual, de vigor moral: um estadista do oportunismo. Enfim , ora direis...lá estará nosso visionário.

Esta lista pode ser acrescida de tantos outros tipos e personalidades. Podemos nos deliciar maldosamente em reconhecermos nela, os conhecidos, os amigos e os úteis adversários de nossos gostos e simpatias. São eles, nossos espelhos e nos refletem parte ou o todo de nós: criaturas plenas de ridículo, dignos de compaixão, carentes de suavidade e ternura.

Esses tipos somos nós, mas, não devem ser objetos de temores, vergonha ou fúria. Vestimos ou vestiremos a máscara dessas personas, algum dia de nossas vidas. Elas encerram um ensinamento sobre as sutilezas do possível e do improvável em nosso caminho de individuação. Mergulhemos profundamente nelas, até sentirmos por trás dessas máscaras o impermanente e, mais por trás, o indissolúvel vazio. Isso é tudo/ nada e isso é que deveria interessar.

Derby, setembro de 2001



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