Caetano Veloso titubeia entre
a modéstia e a empáfia. (publicado em 15.02.98). Ensaio.
"Há uma diferença abissal
entre alguém sentir o que todos esperam que sinta e alguém
não poder deixar de sentir o que lhe é em princípio
vedado", sentencia o cantor e compositor Caetano Veloso na torre do
tempo onde escreveu "Verdade Tropical", seu livro de 524 páginas
que atingiu , sem muito sucesso, as livrarias neste ano de 98.
O livro, dividido em 4 partes mais
uma "conclusão" intitulada "Vereda" (como a música "Vereda
Tropical" ou o romance de Guimarães Rosa "Grande Sertão:
Veredas"), traz o estigma barroco , dialético, exercita o narcisismo
cristão (não convicto) e se abre para uma nova visão
da caretice brasileira que rejeita o pluralismo de idéias
cultuado por alguns tropicalistas ( integrantes do movimento criado
pelo próprio Caetano, Gil e outros nos anos 60) . Caetano alinhava
críticas à nossa cultura e tenta açambarcar 30
anos da nossa história. Não fracassa nem triunfa no "élan"
de ajustar contas com o passado . A narrativa busca um estranhamento
que parece didático e feito para estrangeiros ou brasileiros
que ignoram nossa evolução cultural nos últimos
30 anos.
A capa do livro é verde, laranja,
vermelha e branca, sem muito contraste, parece uma coisa amassada .
Na dedicatória, encontramos o nome de David Byrne líder
do extinto grupo norte- americano Talking Heads .
O índice onomástico reforça
o que vemos em cada página: o autor titubeia entre a modéstia
e a empáfia quando o assunto é "nossa nação
falhada que devia se envergonhar de um dia ter sido chamada país
do futuro" (O país mais novo da América já que
os outros foram "descobertos" em 1492).
Existem , coisa tão comum ,
os erros que sabe Deus de quem são, como "pela menos" (p-15).
Mas, duro mesmo de engolir é quando Caetano aponta divisões
entre "esquerda" (louva Arraes) e "direita" (aceita o capitalismo) num
jogo de digressões e elipses estonteantes.
É um livro de anedotas também.
De confidências e análises onde se mesclam homossexualismo
com inautenticidade psicológica, ateísmo com misticismo,
frieza com deslumbramento.
As louvações iniciam-se
com o culto a Maria Bethania (irmã dele), Orlando Silva(
cantor que abusou da morfina e do álcool, "mestre no mistério
do som de nevoeiro da língua portuguesa sobre a paisagem rítmica
afro- ameríndia" ) Carmen Miranda (Ela era "um Brasil
sexualmente exposto , hipercolorido e frutal"), João Gilberto,
Haroldo e Augusto de Campos, Décio Pignatari e segue encontrando
até em Carlinhos Brown traços de "reafricanização
e neopopização"; João Cabral de Melo
Neto ("diante dele tudo parece derramado e desnecessário"),
Jorge Luis Borges (que Caetano segue no que se trata de "influenciar
precursores " ou "inventar uma tradição"), Clarice Lispector
(com quem mantinha comunicação e ficou surpreso quando
a encontrou pessoalmente. "Rapaz, eu sou Clarice Lispector"). Sobre
outros, nosso escritor é mais reticente: Janis Joplin
era "fatalmente mestiça, fatalmente comprometida". Paulo Freire,
"católico de esquerda que fazia propaganda política
camuflada de educação" ( Página 304).
Ciúme, raiva, exigência
de exclusividade, capricho: tudo isso é Caetano, querendo estar
à altura do seu mito , que se torna mais real quando narrado,
revivido, sugerindo assim que se extrai dali uma lição
diferente. Para ele, a Bahia não é Nordeste ( repete isso
várias vezes) e a inveja é saudável ( "de Gil,
de Dedé, etc.") .
Caetano é aquele que quer ter
"pessoas admiradas e gratas" pelo saber que ele tem (página 92).
Sua análise do cinema brasileiro
é familiar. São amigos: Glauber, Sganzerla
e Bressane , "Terra em Transe" mudou sua vida (embora ele critique
que lhe falte clareza) .
Os tropicalistas eram tidos como alienados
pela esquerda . E pelo narcisismo de Caetano podemos perceber alguma
causa. "Ditadura eu rejeitava. O proletariado não me parecia
propriamente estimulante. Operários não podiam, ou não
deviam, decidir quanto ao futuro da minha vida" (página 116)
O Tropicalismo(termo criado por Gilberto
Freyre e rótulo que Caetano encontrou para sua entrada na
História, este mondrongo que nos dá sentido) foi
um negócio . Mercado, marketing. E encontrou apoio literário
, já citado, do concretismo ( "uma panelinha"). Um individualismo
feroz, rasteiro e agressivo em busca de comunhão, parece guiar
os artifícios de Veloso. Ele fala da sua "vocação
para o estrelato" e diz saber como aproveitar "a luz intensa sobre nós".
Sua linguagem é repetitiva e sua imaginação acelerada
. Sutilezas e variações de tom funcionam como epítetos
(palavras que identificam pessoas ou coisas) fugazes de sua " hipersensibilidade"
.
O leitor fica ao mesmo tempo perto
e longe do coração selvagem deste estranho narrador que
evita as fendas das ironias decalcadas do seu fantasioso mundo onde
afirmação , justiça e modernização
assumem perspectivas próprias alternando dor , delícia
e ridículo numa visão algo cubista. Mesmo quando
o assunto é fofoca: Chico Buarque inventou que Caetano
estava internado num hospício em São Paulo e que quando
Bethânia entrou no quarto dele , ele gritou :"Sai carcará,
sai carcará!". Elis Regina disse que Nara Leão
só era cantora porque desrespeitava as forças armadas
e Nara recusava-se a se apresentar ao lado de Elis. No dia da gravação
da música "Baby" (co-autoria não creditada de Bethânia),
Caetano(o autor) e Gal Costa (intérprete) encontraram-se
com o compositor esquerdista Geraldo Vandré que, ao ouvir
a canção, disse :"isso é uma merda" . Virou
escândalo. Caetano deixou de falar com ele.
Nacionalóide? Afeminado? Inusitado?
Doce? "Homem- vinho" ?(como sugeriu Rita Lee) Parcial? Antigo?
Caetano supera tudo isso: "A arte é terrível, é
difícil, não se pode passar incólume por Velásquez
, Mozart ou por Dante." Porém, artistas como
Francis Hime e Edu Lobo engrossavam o coro dos indiferentes ao tropicalismo(
inventado pelos baianos) , calando o que não podia ser
dito. Realismo desencantado: a tropicália enfiou-se nos livros
didáticos de literatura e associou-se ao concretismo e às
vanguardas em geral, numa espécie de continuação
do trabalho iniciado por Oswald de Andrade. No teatro, a peça
"Roda Viva" , um texto ingênuo de Chico Buarque teve a
direção de José Celso Martinez, que também
dirigiu um texto de Oswald, "O Rei da Vela", que podemos incluir na
abrangência tropicalista.
Filosófica ou antropofagicamente,
nosso autor devora sua comida e nos lança visões estrangeiras
sobre o Brasil: nossa "antropofagia cultural" seria um sintoma de nossa
doença congênita de não- filiação,
de ausência do pai, de falta de um significante nacional brasileiro.
"Brazil is hopeless", disse a poeta americana Elizabeth Bishop . "Um
país incompetente". Aprendemos ainda com Caetano que "a língua
inglesa tem sonoridade antes canina que humana"(p-254) . Há
uma espécie de masoquismo em Caetano.
"Até hoje ninguém
se sente à vontade para dizer que ele era veado ", escreve
referindo-se , sem cerimônia ao escritor paulista Mário
de Andrade . O tema do homossexualismo é retomado várias
vezes no livro, quer seja quando o autor fala de sua relação
com Chico Buarque ou com o compositor Toquinho, sem contar as várias
páginas no final do livro.
Caetano cria frases exuberantes: "Sempre
cri numa espécie de organicidade da assimilação
da informação" .(p-275) ou "Deus está solto"
. Seu livro (escrito de 95 a 97) é uma "labareda de significados
cambiantes" e o que ele fala sobre outros poderíamos falar
igualmente sobre ele :"Uma mulher, um macaco, um bailarino, um moleque,
um poeta romântico, um tirano, um doce camarada". Um homem
que sofreu humilhações e esnobismo cultural , foi expulso
do seu próprio país e exilou-se em Londres por dois anos.
As análises que ele faz neste "Verdade Tropical" têm um
pouco da crítica freudiana. Por exemplo, ao referir-se à
composição "Coração Materno" ( aquela em
que a amante pede ao namorado que arranque o coração da
mãe dele e lhe traga, o que o rapaz fez imediatamente, na volta
caiu do cavalo e o coração da mãe, à distância,
disse: "Vem buscar- me , que ainda sou teu"), Veloso diz que vê
ali: "a revelação do impulso matricida, a necessidade
que tem o filho macho de se libertar de um amor materno sufocante"
. Seria uma abordagem "típica das massas brasileiras, da própria
natureza de toda cultura popular". Sobre o cristianismo ele diz
que "A Era do Filho dará lugar à Era do Espírito
Santo" e que " a inexistência de Deus é apenas um
dos aspectos de sua existência".
Nosso autor nunca daria a vida por
um ideal político, assim era o tropicalismo. A impressão
que temos é de uma época de descobertas e, paradoxalmente,
reafirmações (dos ideais modernistas de liberdade) . O
ventre do monstro ou o coração do mal seria a prisão
e mesmo lá nosso herói escreveu a famosa canção
"Irene ri" (um palíndromo, experimente ler de trás para
frente). Ao sair da cadeia concluiu: "O sofrimento não serve
para absolutamente nada".
Caetano ficou feliz quando uma pessoa
de Nova York lhe pediu que escrevesse um livro "para valorizar e situar
a experiência da Música Popular Brasileira em termos mundiais".