Contos, crônicas e ensaios de Moisés Neto publicados no
Jornal do Commercio:

"Abandonar a Literatura" (Conto)

Londres, junho de 1996

Caro amigo,

Desculpe não ter escrito antes, mas tudo foi tão repentino que, confesso, fiquei horrorizado. A imagem da mulher que amei (enquanto estava com ela eu não sabia), morta daquele modo bárbaro, a impossibilidade de tê- la novamente em meus braços, a maneira covarde como os amigos se omitiram, tudo isso somado a uma falta de fé cada vez maior, quase me levou à loucura. Você deve estar estranhando um e- mail em vez de um telefonema. Eu havia jurado evitar qualquer narrativa escrita. Prometi abandonar de vez a porra da literatura.

Mas aí está, bem na sua frente: meu primeiro desabafo depois da maior dor da minha vida (ainda dói). A traição dela foi uma coisa tão perfeita que até agora me pergunto como pude ser tão idiota e não prever que ela estava alimentando aquele menino, dando roupas, tratando dos dentes dele e dando dinheiro porque precisava de um novo corpo para sugar e se manter "jovem".

Acredite, quando vi o rapazinho no nosso apartamento - quando fui concretizar que a estava abandonando para sempre - eu até achei bom que aquela bruxa tivesse arranjado nova vítima e me deixado em "paz". Não imaginava a espécie de feitiço que me aguardava nem imaginei que aquele boy fosse matá-la.

Pobrezinha.

Tinha 51 anos mas era como se tivesse começando a viver naquele momento, tal era a vitalidade dos gestos - que até hoje debatem- se na minha memória desde que fugi do Recife e vim para cá. Sei que perdi dinheiro com a venda do apartamento. Mas, somando tudo, tenho grana para passar dois anos sem trabalhar, penso em fazer mestrado, você sabe. As coisas são mais fáceis do que pensávamos . Tem também aquele lance de passar seis meses no Tibet.

Esse meu amigo, com quem estou dividindo as despesas de uma casa aqui na Inglaterra , ensina Literatura e tem contatos que você nem imagina. Temos conversado muito. Ele é budista, é tudo tão surpreendente e tão possível que eu, de certa forma, estou superando esta minha maldita ansiedade e encontrando um caminho para recompor meu coração e ensiná-lo a ser feliz novamente neste quase verão londrino. Tenho ido a todos os lugares que visitamos juntos o ano passado .

E o Recife, como está?




"O Exílio é um país sem alma" ( publicado dia 1/9/96). (Ensaio) .

"Os Versos Satânicos de Salman Rushdie"

"Satã sendo condenado a vagar , em sua condição de anjo, tem um tipo de império de água e ar . Parte de sua punição: não ter local fixo onde possa descansar os pés" , sentencia Daniel Dafoe na epígrafe de "Os Versos Satânicos" do escritor indiano naturalizado inglês Salman Rushdie , que voltou a ser notícia este ano (96) pelo lançamento do seu novo romance "O Último Suspiro do Mouro".

Vida frenética por ter recebido um édito de morte, a Fatwa, Rushdie também não tem lugar fixo para colocar os pés pois, o muçulmano que o matar ganhará uma fortuna de recompensa por livrar o Islã de tal praga. Rushdie, numa longa narrativa onde explora o fantástico , expôs o profeta Maomé ao ridículo, mostrando-o como um bêbado e o anjo Gabriel como um trapaceiro. Vamos e venhamos: Devemos ou não respeitar o altar dos outros? Até que ponto a não publicação de "Os Versos Satânicos" no Brasil é censura? Publicidade gratuita o livro tem, pois não é todo dia que surge uma obra de arte tão controversa.

Estes dois romances de Rushdie têm muito em comum: bom humor, mistério, fábulas, alegorias, jogo de palavras, amor e...provocação. "O Último Suspiro do Mouro" fala sobre a Índia e, sabendo que tipo de voz Rushdie empresta aos seus narradores e personagens , não nos espantamos que os ultranacionalistas tenham tentado proibir seu lançamento no país de Krishna .

Em Rushdie, a unidade e continuidade da cultura ocidental é condimentada com tempero do oriente. Em seus romances à clef (Chave: histórias codificadas onde personagens reais aparecem com nomes falsos e transfiguradas ), vemos que a religião nunca derrotou o paganismo , a cultura animalesca que domina o planeta Terra . "Os Versos Satânicos" exibe amoralidade, ironia , violência cômica , sadismo: Saladim Chamcha, um ator especializado em comédias, uma espécie de anti- herói, passa a se metamorfosear num demônio típico , de pêlos, chifres e rabo , depois de um acidente de avião. No mesmo avião vinha uma ator dramático, Gibree (Gabriel), que interpretava divindades no cinema e que depois do tal acidente, volta à vida emanando luz. Logo que o avião cai, Saladim começa sua purgação: apanha da polícia e é torturado , perde tudo que tem - mulher, dinheiro, emprego, respeito, enfim. Vemos com frenesi o narrador estilhaçar a trama em várias unidades e voyeuristicamente nos deparamos com uma sensualidade lambuzada de malícia obsessiva. Rushdie cria também imagens fantásticas: Uma tempestade de neve vista de um trem faz a Inglaterra parecer "TV quando acaba a programação do dia" e o avião "não é como um útero voador e sim como um falo metálico e os passageiros são como espermatozóides prontos para ser ejaculados". É uma ansiedade parecida com culpa sexual sublimada por sensacionalismo.

A conversa com o leitor dinamiza a narrativa, que por si só já está cheia de tiradas cômicas, como na passagem do seqüestro do avião onde o bandido ironiza dizendo que todos morrerão ( nossos heróis vão morrer/ cair na terra) e, já que são 50, renascerão "Cinqüêntuplos" ("fiftuplets") . Os dotes verborrágicos do autor assemelham- se aos do colombiano García Marquez dos primeiros livros.

"O exílio é um país sem alma, é o sonho de um retorno glorioso" , choraminga numa espécie de desabafo , para logo a seguir espinafrar: Amar o Islã é "amassar os relógios" (romper com o ontem / hoje/ amanhã), para eles( os muçulmanos) "o progresso é Satã". Aparecem personagens como a mulher que come borboletas e uma árvore muçulmana que cresceu tanto que ninguém mais distingue o que é árvore e o que é a cidade. E, para encerrar, uma frase de um dos personagens: "Não ter piedade é a única coisa que um cartunista precisa. Que artista teria sido Disney se não tivesse coração . Esta foi sua falha trágica."




"Uma Fantasia Completa Cem Anos" . Publicado em 4.8.96. (Ensaio)

"Teu cadáver será arrancado da tumba, (...), vagarás e o sangue de todos os teus terás de chupar..." , escreveu Lord Byron no poema "Giaour" de 1813. O romance "Dracula" do inglês Bram Stoker completa em 1997 cem anos de publicado. É um livro de códigos ideológicos e temáticos bem definidos e deve ser colocado entre as obras mais conhecidas de ficção em prosa . Seu caráter epistolar é costurado por uma sintaxe narrativa que , se não foi inovadora , é pelo menos estonteante. Uma fantasia de cem anos.

Sua capacidade evocativa e solidez icônica, seu discurso figurado(ironia), sua base romântica garantem a constituição da mensagem narrativa. A presença de diversos narrradores neste romance produz a focalização onisciente ( toda a ação se pasa em um ano e tomamos conhecimento de tudo através de cartas e documentos dos personagens ( o que nos remete ao "Werther" do escritor alemão Goethe, marco inicial do Romantismo), num tom que às vezes tem algo de desconcertante, como num estranho sonho embriagador . Nestes dias de AIDS a contaminação pelo sangue redimensiona- se e ajuda a potencializar o poético horror inglês.

Embora a crença em vampiros tivesse se espalhado pela Ásia e Europa , era inicialmente um lenda eslava e húngara sobre um chupa- sangue . Tudo foi documentado pela igreja da época (1730-1735). Mas podemos voltar ao século 15 e suas histórias sobre a Dinastia (uma ordem) Dracul (dragão) que defendia a Igreja nas guerras "santas". Um membro deste grupo teria iniciado o culto na Europa. Era conhecido como "O Empalador", pelos seus métodos de executar seus inimigos ( notem desde já o jogo de imagens: a estaca terá de ser enfiada no coração de Dracula ). Mais longe, podemos buscar na Grécia antiga a Lâmia, que seduzia jovens para devorar-lhes a carne. Goethe, em momentos de hematodpsia (sede de sangue com raízes sensuais), escreveu " A Noiva de Corinto", uma balada. O inglês Coleridge escreveu em 1797-1800 o poema "Christabel", com o mesmo mote. No cinema e no teatro, (sucesso na Broadway em 1927) o húngaro Bela Lugosi e o ator Chistopher Lee fizeram fortuna sugando esta veia (Dracula, o vampiro). Outro marco é o filme "Andy Warhol apresenta Dracula" ,onde o diretor Paul Morrisey cultua a androginia e o humor que cercam o personagem. Devemos destacar também a série de romances da escritora americana Anne Rice sobre "O Vampiro Lestat" ( no cinema interpretado por Tom Cruise) .

Voltemos ao livro : o narrador- mor ( Jonathan Harker, que é o namorado da mocinha, Mina ) vai passar um mês com Dracula a negócios na Transilvânia, Romênia. O vampiro nos aparece como num vácuo onde inexistem doença, pobreza, velhice e onde ele reina absoluto sobre a natureza, os ventos, a realidade, enfim. Outra personagem feminina que mora com Mina é Lucy, que, de certa forma, representa nossa derrota : a) diante do capitalismo americano, um de seus pretendente é um texano, Quincy, que enfiará em Dracula a estaca fatal, b) à nobreza , a quem ela escolhe, e c) à Ciência (outro pretendente seu é o Dr. Seward, médico de um hospício cujo chefe, Van Helsing, será uma espécie de ícone da resistência humana , grande articulador da queda de Dracula - que seria nosso lado selvagem/ eterno, nossa natureza elementar ). O prenome de Van Helsing é Abraão ( que, na Bíblia, estava disposto a assassinar o próprio filho para provar sua fidelidade diante de deus). Lucy é como Vênus (deusa do amor) a servir de contraponto a Abraão (pai espiritual dos cristãos), Lucy, então, exibe a danação da carne, a vontade de se entregar em êxtase, tremendo em insatisfação. Mina seria nosso lado mais família , momentaneamente tentada pelo lado escuro que tenta destruir sua fé cristã instalando no seu coração a eterna e insaciável sede.

Gravidezes paródicas permeiam o livro como num retorno ao drama do Éden onde a perversidade da serpente envergonhou a nudez dos homens e dificultou o acesso ao paraíso. Como Ulisses buscando Penélope , desconfiado, Dracula busca Mina que o livraria do hermafroditismo devolvendo- lhe a virilidade através de um amor único , eterno, vermelho ( a cor do romance) . É o consangüíneo no lugar do etéreo , da amizade pura . O patriarcado resiste à imposição de tal sexualidade e empurra Narciso para um beco sem saída. Diante disso Dracula não tem a menor chance.

Dracula é um monstro porque nos fere com sua androginia , atinge nossa ética judaico- cristã / científica/ capitalista. Ele incita ao caos e faz- nos lembrar o pântano de onde todos viemos.




"Todos os Clássicos estão mortos"( publicado em setembro de 96) . Conto.

Pompéia, Itália. 1996 DC

Sinto- me livre . Se eu fosse uma fazenda, hoje não teria cercas. O beijo que me incendiava, hoje me congela. Bloquearam- me as saídas, escapei por uma das entradas . Quebrei todos os meus ídolos guerreiros. Bah! "Guerras não fazem grandes pessoas".

Preservando múmias sem platéias. Foi como eu me senti ao deixar nossa cidade . Só o ódio me aquecia. Enchi os bolsos com um punhado de dólares, um dólar é um dólar em qualquer língua.

O Oceano Atlântico e tanta terra me separa de vocês. A isto, um brinde de Lachryma Christi, o vinho mais pedido aqui em Pompéia, onde estou há mais de uma semana. O sangue de Baco no meu coração pôs- me em estado de escrever, um amigo meu dizia que as musas não se aproximam de um homem sóbrio. O sol italiano mistura minha sombra às sombras destas belas ruínas milenares. Leio grafites na cidade fantasma e olho o devastador Vesúvio adormecido, metáfora da minha arte danada. Sou hóspede de um hotel pròximo, estou abraçando uma mulher com os cabelos cor de fogo , que eu trouxe do Brasil e do nosso quarto vemos a silhueta do vulcão. Observamos os montes enluarados e esta cidade parece um Lázaro redivivo. Fiz promessa de voltar à Italia assim que me apaixonasse novamente e aqui estou. Os pores- do -sol do passado já não me conspurcam mais . Chega de bugiganga .

Hoje bem cedo, fitando esta cidade, veio-me à cabeça uma frase que se repetia sem sentido: "Todos os clássicos estão mortos".

Olhei para o Mar Tirreno. Juntando as pontas do tempo. Comparando Pompéia hoje com os desenhos que me mostram a cidade nos seus áureos tempos, com seu comércio, seus lupanares, sua vida louca , sua tragédia apocalíptica. Escuto ecos , sinto vibrações. Busco tornar minha vida mais digna, melhorar meus costumes, juntar o útil ao doce, corrigir-me, atingir a consciência do que realmente eu sou.



"A morte e vida de Drummond" . (publicada em 20.7.97) . Crônica.


Em agosto completam-se 10 anos da morte do poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade . Drummond frio, distante, gauche que faz ver o mundo cotidiano melhor , mais humano em erros e acertos, sem entregar a responsabilidade de sua vida aos outros , suportando sonhos, entendendo o orgulho como fonte do medo, Cruel é a vida ou nosso olhar despreparado?

"O hábito de sofrer que tanto me diverte" , futuca a voz de poeta que nunca morre e nos entretém: " Nisso vieram os pássaros , rubros, sufocados sem canto, e pousaram a esmo. Todos se transformaram em pedra. Já não sinto piedade". Aí está a sua desesperada tranqüilidade : longe da embalagem política que lhe cobraram. Se foi fraco, se foi tolo, ele redimensionou o pó( de onde viemos e para onde vamos) das lembranças, transformou- o em seu brinquedo dramático, sua pièce de resistance : o poema.

Farmacêutico, professor, comunista, funcionário, ele foi o "José" descrito num de seus poemas mais conhecidos. O poeta que insistia na necessidade de seguirmos de mãos dadas, o poeta da canção amiga que buscou extrair nas forças líricas do mundo a importância do diálogo mesmo quando a solidão é um vício. Expressou o Boitempo em forma fixa ou verso livre. Drummond é um fugitivo da caverna de Platão ( que criticou as limitações do homem).

A sensualidade nele é delírio : "Alma, desejo, membro e vulva(...) úmido subterrâneo da vagina". "A lavadeira me deu as maminhas", disse Carlos, eclipsando ânsias e jogos mentais num inextrincável beijo que se mistura com baba. Escrevia para si mesmo também: "meu verso me agrada, dá cambalhotas para mim mesmo". É o solitário dominador na ilha da imaginação, voyeur no jogo do choque social querendo a vida sem mistificações : "Sou de ferro". Foi poeta do oprimido e pretendeu "Dinamitar a Ilha de Manhattan " com sua injusta distribuição de renda e poder infernal.

Na velhice, vimos um Drummond careca e enrugado, um Peter Pan taciturno : "Perdi o bonde e a esperança(...) a rua é inútil", possuidor da chave que abre o reino das palavras . Foi enredo de escolas de samba do Rio de Janeiro (Mangueira-87 e Vila Isabel-80) . Era o bom selvagem com suas delícias individuais, como Machado de Assis, num truísmo (verdade evidente) de um claro enigma , palco de neuroses amassadas fazendo reluzir o diamante do espírito, porém com a máscara social bem afivelada, e arrematando tudo isso uma comovente ironia: "E sempre no passado aquele orgasmo". Morreu aos 85 anos, perdera a filha querida pouco tempo antes. "A poesia é incomunicável. Fique no seu canto. Não ame."



"Abre alas, que o samba está na avenida". (Publicado em 9.2.97). Ensaio.

O samba é uma das coisas mais divertidas desde que os europeus chegaram aqui com seus escravos e coisas. Uma arma que virou poema. Encontramos poemas no Maracatu, frevo e outras manifestações folclóricas mas, no samba, os pretos e os brancos traçaram um perfil da vida moderna de uma forma meio ingênua , como um sujeito embriagado no seu caminho do berço ao túmulo. Nenhum outro ritmo exibe o pobre, o miserável, oprimido, explorado de tal forma revertendo o quadro sombrio em sonho carregado de alegorias. O samba brasileiro será o último a render-se : "Eu sou o samba/ Sou eu quem levo a alegria para milhões e corações brasileiros". O samba foi oficializado no Rio de Janeiro por Donga em 1917 que, com "Pelo Telefone", inaugurou com um instrumento de modernidade este novo caminho da música dos afro-brasileiros. Antes de chegar ao Rio, o samba estava no Maranhão e na Bahia. No Recife, chegou um pouco mais tarde.

"Deixa a tristeza pra lá/ canta forte, canta alto/ que a vida vai melhorar" e se vai! Surdos, tambores , cuícas, abalam terreiros e apartamentos da estranha pirâmide social brasileira. A Federação das Escolas de Samba de Pernambuco agiliza o desfile das escolas. Luta e fantasia deslizam com o samba pelas avenidas do Recife durante o carnaval , uma glória efêmera , efervescente, ritualística. Gigante do Samba, Galeria do Ritmo, Escola do Zé, Acadêmicos do Cordeiro , Rebeldes, Estudantes de São José, Samarina, e tantas outras de igual importância nos trazem uma euforia única: "Oh, sereia fico a imaginar/ em tempo de lua cheia/ como é belo o teu cantar" . Há por trás de tudo isso também uma certa guerra entre grupos e federações . Não é fácil manter a coesão dos grupos em meio a tantas adversidades numa cidade que não tem o samba como prioridade no carnaval. Uma escola de 2º grupo conta em média com 400 componentes, fora os colaboradores: "Obrigado ao Criador/ a terra quem clareia é o sol/ que eu faço parte dela (...) fogo e magia(...) mistura de cores", sai cantando o puxador como uma autêntica esfinge do século que está se acabando.

Em 95, a Galeria do Ritmo homenageou o comediante Luís Lima, que entrou na avenida sob aplauso e gotículas de chuva que sob os refletores mais pareciam confetes coloridos : " Na ribalta do riso(...) personagens diferentes(...) o Rei das emoções/ Dramatizar/Satirizar/ Liberta o peito/ Vamos gargalhar!" . São letras ingênuas, muitas vezes com erros que fazem a língua culta arrepiar-se , porém trazem a marca do povo que é sempre forte e representa o inconsciente coletivo de uma forma ou de outra.

Irmão do jazz, da bossa-nova, o samba é irônico , cachaceiro, com seus atabaques e tambores das tribos indígenas do século 17 e vem se arrastando em cordões , ranchos, que já se vestiam de seda chinesa e tecidos europeus com os quais o povo recriava o grand monde . E vinha índio de cobra na mão, pandeiro, violão e o futucado dos cavaquinhos apimentados. No início era só o refrão, o resto era improviso. AMAMENTADO POR MULHERES, O SAMBA É MACHO-FÊMEA , é rebolado, malícia, carinho. Traz no bojo a sua palavra mais forte: lenitivo , mestre-sala e porta -bandeira de uma vontade desenfreada de viver brilhando ou expressando sua dor misturada com arte, ajeitando , arrumando, confeitando, enganador e enganado. Surge o samba na avenida Guararapes , a 3ª menor do mundo, saudando o povo e pedindo passagem, ou então na Dantas Barreto, ou na ponte Maurício de Nassau, a ponte das estátuas, é o embriagante sonho do esquecimento, o beijo do verbo com a natureza, alma e corpo numa dança espetacular, imaginativa, movimentando-se com uniformidade, constância, empolgação , singularidade, personagens de um enredo exibido em alegorias, adereços, dança. Prisioneira do tempo, a poesia ali tem regras próprias, nada de erudito em sua descrição ou no show de elementos dramáticos que anuncia gestos em busca de tradução própria e dos outros como num tabuleiro de camelô, vendendo verdades e mentiras, Orfeus fugindo do inferno sem poder olhar para trás. Um bom samba é como uma oração, uma esperança de não ser mais triste.



"O Sobrenatural e o ameaçador" (Publicado ) (Artigo)

Neste final de Outubro a lembrar de Finados, Todos os Santos ou mesmo do antigo Halloween americano , deparei- me com os versos do poeta e mestre da xilografia J. Borges, pernambucano dos melhores : " Senhora, dancei com Corina/ Até alta madrugada/ deixei com ela objetos e minha capa emprestada(...) disse- lhe a mulher chorando:/ A minha filha Corina há muito tempo que é morta(...) isso só sendo um mistério / eu vou levar o senhor agora no cemitério (...) e saiu com o rapaz/ na catacumba chegou/ o isqueiro o rádio e a capa/ ele logo avistou " . Na aventura do homem, "a morte é o véu que aqueles que vivem chamam vida" , rebateria Shelley, poeta romântico inglês de marca maior .

É a literatura entregando- se ao sobrenatural , ao fantástico, ao ameaçador monstro para que lhe abocanhe, feroz . Nos mares, nos sertões ou em comunidades modernas. Nos mares, citamos o livro "Tubarão" de Peter Benchley; nas comunidades, temos o texto cinematográfico de Zé do Caixão e os livros de Stephen King. São textos onde o Bem e o Mal não se acomodam e nos compraz vê-los assim, diluindo- se entre o real e o fantástico como num conto de Murilo Rubião , ou no romance de King "O Corredor da Morte", onde um inocente é levado à cadeira elétrica . Como Dalilas, os leitores agarram- se às páginas que os mergulham num mar de adversidades, aventuras e malícias onde ritmo, caracterização, texto, ambiente , narrativa e trama atingem o exagero enchendo a máquina de espíritos e "pervertendo" a realidade , tentando assim reverter a síndrome de heróis de um épico patético que ameaça nossos dias. A solidão é afastada quando, conceituando a ansiedade, manipulando- a, fazemos nosso ensaio da morte num " teatro mental" . É como se numa ensolarada manhã a ameaça injetasse um pouco de caos necessário à ordem.

O Nordeste do Brasil é marcado pelo mistério, pelo misterioso, influência que vem do árabe, dos ibéricos, dos africanos com suas lendas e mitos. O maravilhoso aqui se espalhou, descarregando nossos maus sentimentos e comendo nossos pecados em ardor que não há exegese (explicação / análise) que englobe tudo.

No "Romance d' A Pedra do Reino", mestre Ariano Suassuna mergulha seu herói Dinis Quaderna no sobrenatural, no fantástico, no alucinatório , onde cavaleiros com dentes de cachorro , ou ainda, seres com sete cobras corais " a modo de língua" folhetinizam a morte, o desaparecimento por encanto, relativizando assim o verossímil , embevecendo- nos com a surpresa grandiosa, num impacto que lembra o estilo Barroco. É a ruptura entre perda e posse, realidade e fantasia : Seremos sempre monstros da nossa própria criação? Heróis pícaros ,heróis trágicos , nesta Morte e Vida Severina de aleluias e agonias.




Chico Science: Um Fausto às avessas . (publicada em 8.2.97) Crônica

Se grudássemos nossa dor ao corpo morto de Chico Science, poderíamos nos livrar do caos sem fim pernambucano? Mesmo com o conhecimento da história do Recife e suas lutas, a revolução aqui está datada, o que o malungo fez foi a desconstrução da nossas raízes culturais de maneira catártica pré- freudiana . Encarnando o anti-mestre, ele celebrou um Pernambuco crucificado e vítima de inanição que mesmo assim está sempre a brincar de ser feliz e zombar da inútil erudição dos seus oprimidos.

Quando fecharam o túmulo do mangueboy, restou-nos a pior lágrima possível, a da esperança sufocada, ali mesmo a globalização riu feroz , resta- nos a perversão cultural que vigorava antes dele e continuará nesta terra onde ignorantes e intelectuais compactuam num massacre do amor próprio e da dignidade. Qual São Jorge ou um Fausto às avessas, Chico sobrepôs- se aos medos e às doenças e nem a morte o vencerá, ele não será diminuído pela morte, menores estamos nós. O miserável clichê "arte longa, vida curta" não justifica o sacrifício a que são submetidos os artistas da nossa terra. Enterramos este menino com uma fúria impotente a nos arrepiar . Escrevo para não gritar. As frias estrelas torturam- me lá do céu, depois que a noite caiu melancólica sobre este nosso jardim selvagem. Venham, monstros! Venham sobre nossos corpos de artistas que odeiam o destino que afasta o prazer e transforma simples lembranças em pesadelos .

Maracatu, maracatu: bicho amestrado com capacidade de ser feliz. A força da Nação ecoa e, com um esforço, um riso triste se desenha nos meus lábios nessa espécie de solidão "pra ficar pensando melhor".



Fernando Gabeira faz comédia da vida.

Se, como um anjo de pedra movendo- se com suas asas negras, a lei lhe perseguisse e você não pudesse se agarrar a nada que não tivesse de largar em 30 segundos quando a polícia chegasse?

Assim aconteceu com Fernando Gabeira, intelectual mineiro, que teve sua vida representada no filme "O Que É Isso Companheiro?", baseado em seu livro homônimo que relata a sua participação num grupo revolucionário brasileiro durante os famigerados anos 60 .

O sonho dos jovens dos anos 60 e 70 naufragou na década de 80. Como uma túnica frágil, rasgou- se o véu do templo de alto até embaixo, num cenário tropical da mais completa futilidade e ziriguidum .

Gabeira, que fugira do Brasil para se exilar na Europa, voltou com a "abertura " do final dos anos 70. Num cenário de harmonia pré- Tancredo Neves, surge Gabeira do nada, da desinformação militar: o cara que lutou por um Brasil menos ruim volta para narrar seu épico pop, suas histórias, suas aventuras, no Brasil e no exílio. O antigo guerrilheiro Diogo usou seus macetes de jornalista para compor sua odisséia. Frases curtas, parágrafos de fácil leitura e temas empolgantes. Botou uma tanga de croché , foi se bronzear em Ipanema e reinou absoluto numa mídia carente de heróis: "Mude você mesmo", "Seja natural", "Nada de astral baixo", "A gente se encontra por aí...", entrou no clima?. Depois de seqüestrar, roubar e agitar mil e uma, o guerrilheiro chocava os mais conservadores confessando suas relações bissexuais e transformando sua vida num piquenique . Era a "política do corpo" da qual o filme, é claro, passa a milhas de distância. O filme é tão ruim que deve ser esquecido (destaque para os comediantes). Os livros de Gabeira ("O crepúsculo do Macho" e "Entradas e Bandeiras", entre outros), estes sim, merecem ser revisitados apesar de datados.

Outros exilados que voltaram com Gabeira, por exemplo Luis Carlos Prestes (cuja mulher, Olga Benário, foi entregue aos nazistas pelo governo Vargas e morta num campo de concentração nazista em 1942) e o grande Gregório Bezerra, além de Miguel Arraes ,é claro, insistiam na glorificação partidária de esquerda , mas nosso bom mineiro preferia comentar a discriminação sofrida pelas empregadas domésticas que eram obrigadas a usar o elevador de serviço. O figurino usado por Gabeira era no mínimo surpreendente e as fotos que ele despejou na mídia ganharam capas de revistas como Veja. O vazio do céu esvaziava o sentido do mundo. Parecia que aquele homem que já tinha feito seus deveres de casa queria tirar longas férias num planeta transformado em país das maravilhas. As descrições de lugares exóticos como a Índia fascinaram milhares de leitores. O Partido Verde, o chapéu verde, as aulas de balé clássico e ter seus carrascos elogiando seus livros pareceram a algumas pessoas artifícios de uma direita que queria ser perdoada por jogar o país numa miséria que os políticos até o final dos anos 90 só fariam piorar mais e mais. Intelectuais como Josué Montello apoiaram-no, Gilberto Gil apoiou , abraçou e beijou em público . Eram as cores de um futuro promissor anunciado nos comícios democráticos onde todos clamavam "revolução" e os mais crédulos acreditaram que "diretas já!" seriam a solução para um país que prefere sexo , samba ,futebol, novela e copiar o pior que os americanos oferecem, enquanto educação , saúde e justiça são jogadas de lado na primeira oportunidade, um país que não tem tempo para esperar, pensar, num futuro melhor.

Ah, Le Monde! Os livros de Gabeira eram como a comédia da vida coletiva brasileira. Num dancing days repetitivo, ele usou artifícios comuns na literatura: Ironia, ruptura com a linearidade do tempo gerando expectativas no leitor, estranhamento (do comum, do banal lapidando-o como pedra rara).

Como um bandeirante louco em busca de esmeraldas, o escritor rastejou até Brasília, onde estabeleceu- se como político que defendia ideais libertários de uma geração " cabeça" . Sem ele nunca poderíamos imaginar o "outro lado" do guerrilheiro , os seus bastidores . Gabeira foi e é um referencial. Mas este mineiro que influenciou tanta gente cairá na lata de lixo da história? Este jornalista que ficcionou sua vida, servirá de exemplo?

The answer ,my friend, is blowing in the wind

The answer is blowing in the wind.




Um legítimo cenário shakespeareano ( artigo publicado em 28.5.97)

Se você vai a Inglaterra , não deixe de visitar o Castelo de Windsor, pequena cidade perto de Londres, às margens do Rio Tâmisa.

Lá está o mais velho castelo ainda em uso pelos monarcas britânicos. Sua arquitetura é um resumo de todos os estilos arquitetônicos que deliciaram o mundo desde 1080 ( data da fundação do castelo que sofreu várias reformas e ampliações). Suas torres cilíndricas são um espetáculo à parte assim como a Capela de St. George, cujo telhado exibe esculturas de animais(às vezes grotescos).

Além de alas imensas com pinturas no teto, o castelo tem vários "museus" , como o de porcelana. Você se depara com curiosidades como a armadura de Henrique VIII, quadros, mobília, esculturas e outras preciosidades que fazem pensar nos saques necessários para suprir tudo isto ( o Brasil foi explorado até a última gota) . São Rembrants, Van Dycks, Rubens e muito mais.

Foi neste castelo que a então princesa Elizabeth II passou parte de sua adolescência durante a 2ª Guerra Mundial. Os jardins são fantásticos e incluem regatos e mil recantos. A ostentação de uma mesa de jantar posta para 60 pessoas pode chatear você, mas não se deixe abater e saia para dar uma volta na cidade ao cair da tarde. Windsor é um lugar simples, com bons restaurantes, indefectíveis lojinhas e o rio Tâmisa dourado pelo sol é encantador.

Shakespeare escreveu "As Alegres Comadres de Windsor" , uma comédia, onde espinafra: "as pessoas ali sofrem a paixão exagerada das bestas, a imaginação delirante dos incapazes, e expõem os vícios ingenuamente à luz do dia" . Foi nesta peça que o bardo fez reaparecer um dos seus personagens mais comentados: Falstaff. Mas isso faz muito tempo. Hoje você deve recitar outra fala desta peça: "Vou revirar Windsor!"




Variações sobre Narciso e Jesus (publicado em 22.12.96) Conto

Foi no último natal com amigos em Paris.

Dezembro pegou- me de surpresa, mais uma vez.

O reencontro com velho amigo exilado no cinza: Paolo, filósofo e dono de uma galeria de arte . As conversas que tivemos me atingiram de tal forma , que as festas de fim de ano foram marcadas pela sua presença na minha memória.

Paris havia atravessado uma greve geral que durou semanas. A decoração de natal virou remendo, Tinha- se que atravessar a cidade a pé (transportes em greve, é claro). Mas o ar de Paolo, quase insociável, objetivo e seguro, o olhar oscilando entre o triste e o irônico ao observar nosso imperfeito planeta (Deus , acelere este milênio!) era o de quem havia conseguido dobrar seu desejo, sua vaidade e personalidade.

O frio cortante. A lua pela metade. Meu amigo prostrado num pequeno café bebia seu cálice de horror . "Se Deus me deu , é porque sabia que eu beberia até a última gota" .

Caprichos da incerteza, falência dos ideais, política sem rumo e sem sentido , a bestialização humana que, bebendo o sangue da mentira e da degeneração, busca enfraquecer a dor , sacrificando a prostituição em estranhos altares.

Certo ou errado Paolo planejava uma reclusão naquele natal . Os antigos dançavam por prazer, não para a exibição. Do mesmo modo Paolo deixava a dor atravessar-lhe o corpo dignamente. Este seria o seu último natal, eu bem sabia.

O cheiro inesquecível de Paris envolvia-nos como num delírio , num sonho cheio de abismos. Em vão convidei-o para juntar-se a mim, minha esposa, nossos amigos. Ele preferia estar só. Ele queria sair limpo desta vida terrena, que ele chamava armadilha da carne. Cantou, num momento poético, lembrando sua antiga companheira: "Tosca, você me faz esquecer Deus" (trecho de uma ópera).

Sereníssima Paris. Meu amigo cravado pela cruel emoção, escutava os badalos dos sinos. O ódio não o excitava , em vez disso estabelecia-se a calma . "Se Jesus morreu pelos pecados de alguém, não foi pelos meus".

A razão da vida , mais do que o ritmo incessante do tempo, é a luz da inteligência sobre o mar escuro da ignorância.

Em silenciosa compreensão, brincávamos com o medo, naquele que seria nosso último encontro.

Uma lágrima dourada pela luz do ocaso, que rolou furtiva do rosto do filósofo, parecia dizer- me, silenciosa : "Feliz Natal". Aquele era o seu jeito de ser, eu sabia. Seja feliz, era o que ele queria me dizer e não sabia como.

Despedimo-nos na Place de La Concorde ( que foi feita em parte com as pedras da Bastilha, antiga prisão) . Eu fiz minhas as palavras do poeta Coleridge :" Ó amigo! Meu conforto e meu guia! Forte em ti mesmo e forte para me dar força!" .

Feliz Natal.




O que aprendemos com Pedro (Publicado em 29.6 .97) (Artigo)

Dia 29 de junho. Dia de São Pedro.

"Pedro foi o primeiro a falar:

-`Mestre, os anjos descerão dos céus para nos ajudar?´

- `Somos os anjos de Deus na terra, Pedro´ respondeu Jesus, `Não existem outros anjos´", escreveu o grego Nikos Kazantzakis em "A Última Tentação de Cristo", romance de 1957, que obteve uma adaptação para o cinema com relativo sucesso, dirigida por Martin Scorcese.

A primeira imagem que tenho de Pedro é a de um filme mudo, em preto e branco, sobre a Paixão de Cristo . Lá está o homem- chave do céu, o fundador da igreja católica, negando Cristo. Lá, o pescador de Cafarnaum, galileu portanto.

No rio Jordão , Pedro encontrou João Batista e Jesus e sua porta para o futuro, longe dos jargões pedantes e mal-humorados que reprovavam e oprimiam os libertários.

Logo vieram Salomé, Roma e Companhia e a ansiedade de Pedro levou- o ao medo diante da avalanche de poder. Negou a causa cristã, mas não apagou totalmente a chama da revolução dentro do peito, esta obstinada vontade que sufoca alguns seres humanos. Levantou-se numa epifania paradisíaca , num sonho de harmonia que celebramos até hoje.

Seu corpo, dizem, está enterrado no Vaticano. Impossível entrar no coliseu sem se lembrar dos mártires . Na Basílica de São Pedro tem uma estátua sua em mármore, os pés gastos de tanto gesto de oração que tocou aqueles dedos rasos . Ah, nossa culpa, nossos desejos.

Pedro foi a Roma alertar contra o poder hipócrita. Oferecia uma divindade transcendental que eclipsava a lógica greco- romana . O sagrado coração de Cristo que ilumina como fator de união em plena cidade da loba. Nero, em sua fantasia, jamais iria supor que a igreja , um milênio depois, seria responsável pela transmissão da cultura ocidental na devastadora idade média.

A crucificação de Pedro de cabeça para baixo no Coliseu pode não corresponder a um fato histórico mas remete-nos ao poder bruto desta terra que regamos com lágrimas quentes e com o suor do nosso trabalho.

A crítica às ambições e conflitos na casa que Pedro sonhou é a grande metáfora do homem idealista, transgredindo com seu instinto, intelecto e espírito ; nutrindo nossa história cultural.

Ao ensinar o que vivenciou, Pedro transmitiu- nos que com perseverança podemos vencer estupidezes.




Cristo de Saramago é chocante. (ensaio)

Na semana em que celebramos mais um dia de Corpus Christi (nesta Sexta-feira dia 6), nada mais oportuno do que passar em revista algumas das interpretações que se têm produzido sobre Jesus Cristo, o principal mito da cultura ocidental e seu maravilhoso mistério de dois mil anos.

" A substância dualista de Cristo- o desejo ardente, tão humano , super- humano, do homem, de atingir Deus- tem sido sempre um mistério profundo e indecifrável para mim . Minha principal aflição e causa de todas as minhas alegrias e sofrimentos. Desde minha juventude, tem sido uma batalha ímpia e impiedosa entre a carne e o espírito. E minha alma é a arena onde estes dois exércitos se encontram e se digladiam ".

Esse texto do escritor Nikos Kazantzákis (1883- 1957) faz parte de uma série que tem como tema a filosofia cristã , tão fundamental nos dias de hoje que quando , no Ocidente, encontramos uma criança que não foi evangelizada, isto nos inquieta, porque a idéia de Jesus deveria ser transmitida junto com os primeiros ensinamentos. Jesus - peça- chave do Novo Testamento (parcialmente escrito em grego), sobre quem nos falam os quatro evangelistas (propagadores da fé), que funcionam como narradores-testemunhas do maravilhoso mistério - já foi analisado por vários intelectuais como Pasolini, com o seu engajado filme "O Evangelho segundo São Mateus" (1964) onde o diretor aplica o método de crítica marxista inspirada em Gramsci . O escritor inglês Anthony Burgess (autor do romance filmado por Stanley Kubrick "A Laranja Mecânica", no qual descreveu cenas onde o herói da narrativa via-se como centurião romano chicoteando Cristo durante a flagelação) escreveu o roteiro para o "Jesus de Nazareth" de Franco Zeffirelli . Este filme escandalizou alguns católicos nos anos 70, quando exibiu uma Virgem Maria sofrendo na hora do parto( A propósito : A Maria de Zeffirelli não envelhece do nascimento à crucificação do Messias) ,um Cristo misterioso e uma encenação no estilo renascentista. Já o grupo de comédia inglês Monty Python deitou e rolou , detonou tudo que podia e, com seu humor ferino, lançou em celulóide uma paródia à Paixão, um pastelão chamado "A Vida de Brian", onde um homem é confundido com o Messias desde o momento em que nasce até sua crucificação, ao lado do Senhor. A mãe de Brian é interpretada por um comediante e a crucificação é encenada como um musical da Broadway , talvez numa alusão ao famoso "Jesus Cristo Superstar" , famoso musical dos anos 70 que optou pela estética hippie para falar de um outro tipo de excluídos .

Mas é na prosa impressa que os autores fazem o maior estardalhaço, utilizando-se às vezes da polifonia (imaginem se Shakespeare tivesse escrito a Paixão de Cristo), e dando asas à imaginação, como o teólogo Kazantzákis que fez Jesus descer da cruz e, conduzido por um arcanjo (meio mal intencionado ...), levar uma vida "comum" , casando e tendo filhos , porém, arrependido, volta no tempo e no espaço para a morte na cruz de onde não poderia fugir. Gore Vidal lançou o extravagante "Ao Vivo do Calvário" . Mas o ponto nevrálgico veio em 92 quando o escritor português José Saramago (forte candidato ao Nobel de Literatura) lançou, pela respeitada Companhia das Letras e em ortografia vigente em Portugal, o seu "Evangelho Segundo Jesus Cristo".

Saramago nasceu em 1922, mas só começou a escrever romances na década de 90. É autor da nova geração portuguesa . A inspiração para escrever o seu "Evangelho..." veio quando, passando por uma banca de revistas, leu meio apressado "O Evangelho Segundo Jesus Cristo" numa manchete ( ora, Cristo não escreveu o Evangelho) Mais tarde, o escritor voltou à banca e não achou mais a manchete. Impressionado, ficou martelando aquela idéia e resolveu escrever sua versão da boa nova escrita num texto português . Uma visão ao mesmo tempo comodista e chocante: José, pai de Cristo, é crucificado. Os irmãos de Jesus ( Tiago, Lísia , José, Judas, Lídia, Justo e Samuel) são apresentados de maneira bem popular. Saramago é socialista convicto , dono de um pensamento refinado . Move-se bem entre parágrafos extensos e sua desenvoltura é exemplar diante de grandes períodos, coisa tão temida pela mídia hoje. Há uma predominância da vírgula em relação ao ponto nos seus textos, assunto já comentado pelo próprio autor, e que neste "Evangelho..." marcará os "diálogos" , que quase não conseguimos distinguir do discurso do narrador. Ponto de interrogação neste texto ? Nem pensar. O autor realmente exibe um estilo, uma marca. Resta- nos a curiosidade de especular suas fontes de pesquisa.





Travestidos de vítimas. (10.93.96) (artigo)

Poderia ter morrido depois...Haveria tempo para mais alguma coisa...Amanhã. Tão afetado e engraçadinho : Pobre artista. Mas ele teve os seus minutos de fama. Será agora apenas história contada por idiotas. Som e fúria voltam a significar nada.

Redimensionando os Mamonas Assassinas( o grupo que acabara de alcançar o estrelato perdeu todos os seus membros num fatal desastre aéreo), encontraremos razões universais para um acordo com a morte . Tantos casos assim na música pop: Jim Morrison, Janis Joplin, Jimi Hendrix, tão pouco tempo tiveram para desfrutar o sucesso. Vemos agora os Mamonas que inesperadamente desaparecem e partem da mediocridade para o além . Eles, que a mídia catapultou em velocidade pop, retornam travestidos de vítimas e sua poesia, que muitos consideraram nociva, hoje pode ser vista por outra ótica devido ao distanciamento. Haveria um novo Walt Whitman preso entre as ferragens? E nós, estúpidos, nem percebíamos? E aquele visual tão colorido? Haveria ali uma espécie vendável de Van Gogh ? Ou um Eros exausto que encontrou Tanatos ? Quem sabe um novo Renato Aragão?. Tudo ali: a vida parecia tão óbvia e desfrutável . Que prazer!

Esta nossa época inconseqüente que produz arte descartável. Literatura de supermercado. Mídia pop . Videoclipe futurista. A indústria da comunicação a produzir pessoas cada vez mais sintéticas. Sexo , rapidez : one way. Piedade e amor ao próximo vão perdendo cada vez mais o sentido para que se construa a grande aldeia virtual. Morreu? É show. É notícia. O velório dos meninos é ao vivo e cheio de detalhes melodramáticos . É sempre assim. A comoção alimenta a mídia. Para que tanta notícia? As máscaras que representam este teatro poderiam ser feitas de preservativos e as cortinas , quando se abrissem, exibiriam um imenso vazio, o vazio que é a falência de uma era em que se lutou pela dignidade humana , e agora o Brasil não tem mais direito a nada. Os poetas não trazem esperanças. O funeral dos Mamonas traz no bojo a estética do novo culto. São tragédias como as de Ayrton Sena e a de Daniela Perez ( que, como a dos Mamonas, aconteceram na mesma época que havia uma sessão para que se aprovassem emendas constitucionais, por coincidência) que nos mostram a total vulnerabilidade da glória. O assassinato de John Lennon. Lembram? Chegaram a levantar a tese de que ele havia feito um pacto com o demo. Pelo amor de Deus! Estamos vivendo a era da bobagem. Da saudade da goma de mascar. Desculpem, falha técnica: o erro foi nosso.

Os Mamonas partem na sua já tão conhecida Brasília amarela de portas abertas para sempre, numa utopia mal resolvida , como num estapafúrdio filme tragicômico . Levam consigo o enigma da ressurreição que faz parte de todo artista. Talvez um arqueólogo, um escafandrista, alguém do futuro reavalie o trabalho dos rapazes e descubra que eles tinham razão. Por enquanto lembremos da cena de Hamlet com o crânio de um bobo da corte na mão naquela peça de Shakespeare: Ri agora Yorick! Todos nós temos um certo encontro marcado.

Não é mesmo?



Caetano Veloso titubeia entre a modéstia e a empáfia. (publicado em 15.02.98). Ensaio.

"Há uma diferença abissal entre alguém sentir o que todos esperam que sinta e alguém não poder deixar de sentir o que lhe é em princípio vedado", sentencia o cantor e compositor Caetano Veloso na torre do tempo onde escreveu "Verdade Tropical", seu livro de 524 páginas que atingiu , sem muito sucesso, as livrarias neste ano de 98.

O livro, dividido em 4 partes mais uma "conclusão" intitulada "Vereda" (como a música "Vereda Tropical" ou o romance de Guimarães Rosa "Grande Sertão: Veredas"), traz o estigma barroco , dialético, exercita o narcisismo cristão (não convicto) e se abre para uma nova visão da caretice brasileira que rejeita o pluralismo de idéias cultuado por alguns tropicalistas ( integrantes do movimento criado pelo próprio Caetano, Gil e outros nos anos 60) . Caetano alinhava críticas à nossa cultura e tenta açambarcar 30 anos da nossa história. Não fracassa nem triunfa no "élan" de ajustar contas com o passado . A narrativa busca um estranhamento que parece didático e feito para estrangeiros ou brasileiros que ignoram nossa evolução cultural nos últimos 30 anos.

A capa do livro é verde, laranja, vermelha e branca, sem muito contraste, parece uma coisa amassada . Na dedicatória, encontramos o nome de David Byrne líder do extinto grupo norte- americano Talking Heads .

O índice onomástico reforça o que vemos em cada página: o autor titubeia entre a modéstia e a empáfia quando o assunto é "nossa nação falhada que devia se envergonhar de um dia ter sido chamada país do futuro" (O país mais novo da América já que os outros foram "descobertos" em 1492).

Existem , coisa tão comum , os erros que sabe Deus de quem são, como "pela menos" (p-15). Mas, duro mesmo de engolir é quando Caetano aponta divisões entre "esquerda" (louva Arraes) e "direita" (aceita o capitalismo) num jogo de digressões e elipses estonteantes.

É um livro de anedotas também. De confidências e análises onde se mesclam homossexualismo com inautenticidade psicológica, ateísmo com misticismo, frieza com deslumbramento.

As louvações iniciam-se com o culto a Maria Bethania (irmã dele), Orlando Silva( cantor que abusou da morfina e do álcool, "mestre no mistério do som de nevoeiro da língua portuguesa sobre a paisagem rítmica afro- ameríndia" ) Carmen Miranda (Ela era "um Brasil sexualmente exposto , hipercolorido e frutal"), João Gilberto, Haroldo e Augusto de Campos, Décio Pignatari e segue encontrando até em Carlinhos Brown traços de "reafricanização e neopopização"; João Cabral de Melo Neto ("diante dele tudo parece derramado e desnecessário"), Jorge Luis Borges (que Caetano segue no que se trata de "influenciar precursores " ou "inventar uma tradição"), Clarice Lispector (com quem mantinha comunicação e ficou surpreso quando a encontrou pessoalmente. "Rapaz, eu sou Clarice Lispector"). Sobre outros, nosso escritor é mais reticente: Janis Joplin era "fatalmente mestiça, fatalmente comprometida". Paulo Freire, "católico de esquerda que fazia propaganda política camuflada de educação" ( Página 304).

Ciúme, raiva, exigência de exclusividade, capricho: tudo isso é Caetano, querendo estar à altura do seu mito , que se torna mais real quando narrado, revivido, sugerindo assim que se extrai dali uma lição diferente. Para ele, a Bahia não é Nordeste ( repete isso várias vezes) e a inveja é saudável ( "de Gil, de Dedé, etc.") .

Caetano é aquele que quer ter "pessoas admiradas e gratas" pelo saber que ele tem (página 92).

Sua análise do cinema brasileiro é familiar. São amigos: Glauber, Sganzerla e Bressane , "Terra em Transe" mudou sua vida (embora ele critique que lhe falte clareza) .

Os tropicalistas eram tidos como alienados pela esquerda . E pelo narcisismo de Caetano podemos perceber alguma causa. "Ditadura eu rejeitava. O proletariado não me parecia propriamente estimulante. Operários não podiam, ou não deviam, decidir quanto ao futuro da minha vida" (página 116)

O Tropicalismo(termo criado por Gilberto Freyre e rótulo que Caetano encontrou para sua entrada na História, este mondrongo que nos dá sentido) foi um negócio . Mercado, marketing. E encontrou apoio literário , já citado, do concretismo ( "uma panelinha"). Um individualismo feroz, rasteiro e agressivo em busca de comunhão, parece guiar os artifícios de Veloso. Ele fala da sua "vocação para o estrelato" e diz saber como aproveitar "a luz intensa sobre nós". Sua linguagem é repetitiva e sua imaginação acelerada . Sutilezas e variações de tom funcionam como epítetos (palavras que identificam pessoas ou coisas) fugazes de sua " hipersensibilidade" .

O leitor fica ao mesmo tempo perto e longe do coração selvagem deste estranho narrador que evita as fendas das ironias decalcadas do seu fantasioso mundo onde afirmação , justiça e modernização assumem perspectivas próprias alternando dor , delícia e ridículo numa visão algo cubista. Mesmo quando o assunto é fofoca: Chico Buarque inventou que Caetano estava internado num hospício em São Paulo e que quando Bethânia entrou no quarto dele , ele gritou :"Sai carcará, sai carcará!". Elis Regina disse que Nara Leão só era cantora porque desrespeitava as forças armadas e Nara recusava-se a se apresentar ao lado de Elis. No dia da gravação da música "Baby" (co-autoria não creditada de Bethânia), Caetano(o autor) e Gal Costa (intérprete) encontraram-se com o compositor esquerdista Geraldo Vandré que, ao ouvir a canção, disse :"isso é uma merda" . Virou escândalo. Caetano deixou de falar com ele.

Nacionalóide? Afeminado? Inusitado? Doce? "Homem- vinho" ?(como sugeriu Rita Lee) Parcial? Antigo? Caetano supera tudo isso: "A arte é terrível, é difícil, não se pode passar incólume por Velásquez , Mozart ou por Dante." Porém, artistas como Francis Hime e Edu Lobo engrossavam o coro dos indiferentes ao tropicalismo( inventado pelos baianos) , calando o que não podia ser dito. Realismo desencantado: a tropicália enfiou-se nos livros didáticos de literatura e associou-se ao concretismo e às vanguardas em geral, numa espécie de continuação do trabalho iniciado por Oswald de Andrade. No teatro, a peça "Roda Viva" , um texto ingênuo de Chico Buarque teve a direção de José Celso Martinez, que também dirigiu um texto de Oswald, "O Rei da Vela", que podemos incluir na abrangência tropicalista.

Filosófica ou antropofagicamente, nosso autor devora sua comida e nos lança visões estrangeiras sobre o Brasil: nossa "antropofagia cultural" seria um sintoma de nossa doença congênita de não- filiação, de ausência do pai, de falta de um significante nacional brasileiro. "Brazil is hopeless", disse a poeta americana Elizabeth Bishop . "Um país incompetente". Aprendemos ainda com Caetano que "a língua inglesa tem sonoridade antes canina que humana"(p-254) . Há uma espécie de masoquismo em Caetano.

"Até hoje ninguém se sente à vontade para dizer que ele era veado ", escreve referindo-se , sem cerimônia ao escritor paulista Mário de Andrade . O tema do homossexualismo é retomado várias vezes no livro, quer seja quando o autor fala de sua relação com Chico Buarque ou com o compositor Toquinho, sem contar as várias páginas no final do livro.

Caetano cria frases exuberantes: "Sempre cri numa espécie de organicidade da assimilação da informação" .(p-275) ou "Deus está solto" . Seu livro (escrito de 95 a 97) é uma "labareda de significados cambiantes" e o que ele fala sobre outros poderíamos falar igualmente sobre ele :"Uma mulher, um macaco, um bailarino, um moleque, um poeta romântico, um tirano, um doce camarada". Um homem que sofreu humilhações e esnobismo cultural , foi expulso do seu próprio país e exilou-se em Londres por dois anos. As análises que ele faz neste "Verdade Tropical" têm um pouco da crítica freudiana. Por exemplo, ao referir-se à composição "Coração Materno" ( aquela em que a amante pede ao namorado que arranque o coração da mãe dele e lhe traga, o que o rapaz fez imediatamente, na volta caiu do cavalo e o coração da mãe, à distância, disse: "Vem buscar- me , que ainda sou teu"), Veloso diz que vê ali: "a revelação do impulso matricida, a necessidade que tem o filho macho de se libertar de um amor materno sufocante" . Seria uma abordagem "típica das massas brasileiras, da própria natureza de toda cultura popular". Sobre o cristianismo ele diz que "A Era do Filho dará lugar à Era do Espírito Santo" e que " a inexistência de Deus é apenas um dos aspectos de sua existência".

Nosso autor nunca daria a vida por um ideal político, assim era o tropicalismo. A impressão que temos é de uma época de descobertas e, paradoxalmente, reafirmações (dos ideais modernistas de liberdade) . O ventre do monstro ou o coração do mal seria a prisão e mesmo lá nosso herói escreveu a famosa canção "Irene ri" (um palíndromo, experimente ler de trás para frente). Ao sair da cadeia concluiu: "O sofrimento não serve para absolutamente nada".

Caetano ficou feliz quando uma pessoa de Nova York lhe pediu que escrevesse um livro "para valorizar e situar a experiência da Música Popular Brasileira em termos mundiais".



Engenharia rima com poesia (publicado em 8.6.97). Artigo.

Se estivesse vivo Joaquim Cardozo, o poeta, de engenharia calculista, recifense, estaria completando 100 anos em agosto de 97. Mesmo tendo estreado na literatura aos 50 anos tem uma obra variada . Na poesia, dominava o ritmo com rigor. Místico ou não , namorou com o Cosmo de maneira admirável . É uma pena que os livros didáticos não dediquem algumas páginas a um estudo da obra deste autor.

Joaquim era discreto. Sua poesia desnorteante ambientava-se muitas vezes nas paisagens secas e agressivas. Um cantar solidário . Transfigurando a amargura e a injustiça sofrida no Nordeste , nele a estilização da cultura popular não soa como aqueles malditos sotaques das novelas que abordam o Nordeste. Neste resgate da nossa riqueza cultural como fonte de salvação ou danação, Joaquim é como uma lufada de esperança soprando sobre a miséria e o esquecimento . Cada verso seu é como um bálsamo, ou reacender a lâmpada que alivia esta escuridão que se abate sobre nós e se irmana com a morte. Uma represa no decurso do tempo para mostrar que um povo não perde suas raízes culturais numa queda.

Faz- se necessário o melhor uso dos nossos valores literários. Jogados num canto nossos autores apenas sobrevivem . Através da nossa literatura poderemos resgatar nossa auto- estima livrando-a do caos e do ridículo estereótipo que nos impuseram.

Joaquim exibe a valentia , não de cangaceiro, que só era forte em bando, mas de um profeta cercado de ironias . Sua poesia, seu teatro, são o espelho, não pelo apelo ao folclore, mas pelo quilate de suas alegorias "como variação do cenário vivo", algo que nos liberta da hesitação e passividade imposta pela fantasia burguesa , este maldito prego do destino que nos crucifica .



"Conto de Natal" ( Publicado no Jornal do Commercio de 25.12.97)

Dezembro sempre foi um mês estranho para mim. Acabam as aulas e o professor de literatura vai embora. Chega o viajante.

Decidi aceitar um convite de amigos que moram em Fernando de Noronha para visitar a Ilha.

O barco deles atracado no Recife partiria pouco antes do natal de 96. Eu estava cansado da falta de confiança imposta pelo meu amor e vivia minha temporada no Inferno.

A travessia num barco pequeno não foi uma boa opção e o álcool mostrou- se um terrível companheiro. Na Ilha andei muito com meus amigos. Noites e dias. Tédio e êxtase.

Sozinho, lia Fernando Pessoa e Rimbaud. Lembrava de Clarice Lispector e encarava friamente a divindade.

Foi na Vila dos Remédios que encontrei meu novo amor.

Não. Não é tão simples assim aos 35 anos, sentir novamente a sensação de estar perdidamente apaixonado por outra pessoa em tão pouco tempo e, em menos de uma semana, ter de desistir desta paixão desesperada .

Dançamos agarrados. Amor em cima dos barcos, pedras, areia, camas, no mar, ao amanhecer. Beijos tantos de os lábios adormecerem felizes de loucura.

À noite, pisávamos nas luzes das estrelas refletidas na areia molhada da praia.

Um delírio de cheiro de corpo e alma que grudaram no meu corpo. Há algo estranho nos professores de Literatura em começo de férias: Gregórios sussurram Bandeiras e Andrades.

Na memória tonitruante latejam- me ainda aqueles dias de paixão tão intensa que me eclipsou e espantou antigos fantasmas.

Terminou de maneira violenta: Ela tinha se tratado de um câncer. Isso fazia-a humilhar os outros mais facilmente.

O abismo delicioso que a nossa relação nos proporcionou foi fecundo e nossa despedida cheia de reticências.

Agora que nos aproximamos novamente do Natal e do Fim do Ano, reacendem- se antigos beijos, realçam- se novos ideais. Aqui estamos com as passagens nas mãos e bagagem(lançamentos e roupas inéditas) pronta. Neva mais nos meus cabelos do que sobre a árvore de natal.

Estou sorrindo ao me despedir de 97. Nem intelectual, nem sentimental: O professor abraça o seu amor e vive os temas essenciais da vida com o corpo todo. Sai no seu delírio construído de matéria crua. Há nele algo de selvagem: É o que o salva.



"Jóia do Rosário Hollywoodiano" (Matéria publicada no Jornal do Commercio de 10.07.93). Crítica.

(Spielberg e o "Parque dos Dinossauros")

Mais uma vez o homem do "Tubarão" e dos "Contatos Imediatos do Terceiro Grau", o americano Steven Spielberg, oferece-nos uma jóia do rosário hollywoodiano: "O Parque dos Dinossauros" (Jurassic Park, Estados Unidos, 1993) em cartaz no Recife desde Junho. Um thriller onde não faltam trocadilhos daquele tipo que às vezes vêm acompanhados de um "desculpe, não pude evitar".

O que você pensaria se visse um dinossauro ( ou seja lá que "sauro" for...) abrindo a porta de uma cozinha ( usando o trinco , lógico) e perseguindo duas criancinhas americanas ? Você acha que isso dá samba? Pode ser o samba do crioulo doido ou então virar tese da famosa crítica norte- americana Camille Paglia ( com suas análises do American way of life).

Spielberg remexe o inconsciente coletivo, levando emoção às "múmias" do mundo moderno: Um apimentado recheio que agrada do primeiro ao último mundo , usando para isso uma história meio sem pé nem cabeça , onde cientistas geram dinossauros a partir de uma informação genética contida no fóssil de um mosquito (que teria sugado um big dinossauro). Se faltam informações adequadas? Não é problema. O autor do livro que inspirou o filme, Michael Crichton, dá a dica: Misture tudo com algo do DNA das rãs. Mas, para tornar as coisas mais convincentes (não que isso seja necessário) , acrescente histórias sobre animais africanos que se transexualizam , sendo capaz até de auto- reprodução e a raça dos nossos ancestrais (quer dizer, contraparentes) já pode se reproduzir e infernizar as telas do planeta com seus gritos e sua falta de modos.

Os atores parecem realmente títeres nas mãos de Spielberg, que tem o dom de transformá- los em coisas tão insípidas quanto seus bichinhos, em sua maioria frutos do computador (efeitos gráficos barateiam a milionária produção). Destaque especial para a antipatia natural de Laura Dern e Sam Neill- o casal de retardados arqueólogos que, fazendo as vezes de heróis , num roteiro que desperdiça talentos como o de Jeff " a mosca" Goldblum(participação mínima no filme) e transforma tudo num Big- Mac requentado ao modo spielberguiano.

As auto-citações, cada dia mais comuns no fazer cinematográfico americano , remetem- nos a: "Gremlins" - "bichinhos" que perseguem um dos vilões do filme , o gordinho que rouba os frascos do laboratório, abrindo as cercas para os dinos baterem pernas ; "Tubarão" - a dupla de monstros na cozinha com as crianças, as cenas na floresta e mais uma dezena de sustos e violência estilizada/ pasteurizada; "Contatos Imediatos do Terceiro Grau" - asm luzes do Parque, alguns ângulos e tomadas inteiras , que nos fazem pensar que o diretor sem Ter como renovar seus truques, resolveu fazer sucesso a qualquer custo compilando antigos êxitos, como por exemplo o bucolismo fantástico de "ET"- no Vale dos Dinossauros " bonzinhos", herbívoros, que pegam gripe (!) de tão "humanos" que são.

O humor negro também se apresenta de maneira óbvia: Um garotinho conta "Um, dois..." e leva um choque elétrico mortal (suspense), entra em coma e morre. Ressuscita , olha para a turma e diz : "Três!" . É mole? Então engula mais um clichê: Imagine o personagem interpretado por Sam Neil depois de ser quase trucidado com todo o seu grupo e passar por diversas torturas sob a fúria do s monstros e outros nonsenses do filme, vira- se par o chefe do Parque e diz: "Acho que não vamos endossar seu parque".

Até que ponto uma platéia agüenta o absurdo de um texto? Autores como Pirandello, Antonin Artaud, Ionesco e tantos outros já levaram à cena dramas cruciais, onde tramas absurdas eram alinhavadas pela lógica da volúpia dos sentidos e encenadas com imagens convincentes . Mas o que Spielberg propõe mais parece um daqueles comerciais sórdidos que tentam salvar sua vida ou fazer você "matar o tempo" , oferecendo um tipo mágico de papel higiênico. Mas, é arte, e homens ocos , mulheres gordas e as crianças que empipocadas, refrigeram -se adocicadas, estão ávidos de coisas assim para fazer sua catarse.

Os críticos tupiniquins não ousaram levantar uma nota dissonante que fosse contra a parafernália promocional que envolve "Jurassic Park" ou sobre o verdadeiro conteúdo dessa geringonça sensacionalista que eu chamo carinhosamente de "o efeito dinossauro", onde a manipulação através da mídia atinge um grau periclitante , quando pensamos que qualquer coisa pode ser empurrada goela abaixo da população do planeta como se fosse um suco de fruta.



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