Amarelo Manga, o filme
por Moisés Neto

O Recife no filme “Amarelo Manga”, do diretor pernambucano, nasceu em Caruaru, Cláudio Assis, com roteiro de Hilton Lacerda (um dos fundadores do Movimento Mangue) é assustadoramente anti-polifônico: todos os personagens têm a mesma voz, a mesma dimensão e parecem prontos para gritar: Fodam-se vocês, nós somos assim, porra!

Só se escuta essa voz, como num imenso monólogo cinematográfico: exclusão!
É um Recife que não tem nome de cidade. Desaparecem as identidades e há um grito como vindo de um campo de concentração, jogo de sombras e cores.
A estréia na “nossa” cidade, Recife, deu-se em 8/08/03 e trouxe quase dois mil convidados para duas salas com capacidade de lotação de 500 pessoas cada uma. Resultado: gente sentada no chão.

Cláudio Assis reclamou contra o governo de Pernambuco, leia-se Jarbas Vasconcelos, que só deu R$ 2.7000,00 para “Amarelo Manga” (cerca de 800 dólares) e que para uma produção carioca como foi “Lisbela e o Prisioneiro” (inspirada na obra de Osman Lins, direção de Guel Arraes) ele liberou quase 400 mil reais, mesmo sendo pra o filho de um adversário político do governador. Talvez porque Lisbela seja “alto astral” e tenha o padrão global de Brasil e Nordeste.

Um homossexual, um necrófilo, uma crente louca para soltar suas taras, um açougueiro que trabalha num matadouro (com direito a uma cena de matança de um boi e o subseqüente banho de sangue e pedaços de carne distribuídos em várias cenas do filme, até chegar ao vômito da crente, que um bicho lambe na hora), uma asmática solitária, interpretada pela atriz Conceição Camarotti, que já havia participado de “Texas Hotel”, curta de Assis que deu origem a este longa. Há também uma personagem-chave da trama que é uma dona de botequim problemática e outra uma moça que vive de biscates vivida pela atriz Magdale Alves, veterana dos palcos recifenses, que na película luta pelo amor do açougueiro e termina com a orelha decepada numa mordida sanguinolenta aplicada pela crente (Dira Paes) que queria pecar gostoso e que a partir daí, vendo seu homem fazendo sexo com outra à beira do rio, resolve se depravar pra valer.

Enfim: o desconcerto, onde intelectuais decadentes como o interpretado por Carlos Carvalho, surgem quase como figuração ou detalhe, faz-nos lembrar que há algo de podre no reino da Dinamarca: é o horror nosso de cada dia mesmo que está fedendo muito e que ganha o auxílio luxuoso de câmeras e tomadas estarrecedoras. Recife está se desnudando no cinema. Foi O Rap de Pequeno Príncipe Contra as Almas Sebosas, agora este Amarelo Manga, dois longas que vieram romper o jejum, ao lado de Baile Perfumado, numa nova safra pernambucana, um novo ciclo cinematográfico.
As almas sebosas continuam assombrando a burguesia e exibindo a injustiça social, o brega-cósmico, o crime, a falta de perspectiva da pobreza em busca de uma saída mais digna. Aos poucos os cangaceiros, flagelados, Zé-manés, vão dando lugar a um Nordeste, Recife, mais urbano, monstruoso, doido, banguela, destrambelhado no asfalto: molambo e mocambo, ainda.

A manga aparece neste filme como fetiche: “manga com leite 0,90”, exibe ao menu do botequim acima citado. Os mais velhos na cidade diziam que manga com leite dava indigestão. Assis explica que a cor amarelo manga lembra palidez de doença, cor de coisa velha. No pós-manguebeat a lama continua dando na canela: só tem caranguejo esperto saindo desse manguezal. A trilha sonora está a cargo de Jorge du Peixe e Lucio Maia, do Nação Zumbi, além de Zero Quatro do Mundo livre s/ a . A Cena Recifense exibida no cinema: Stop! O Recife passou o foi o automóvel?Tudo acontece em 24 horas, como no Ulisses de Joyce que, aliás, também se passa num dia de junho, no filem é 16 de junho. Cláudio encheu o seu filme de subtextos provocativos. Estômago e sexo, eis o ser e o não-ser num filme feito com 450 mil reais, 150 mil dólares. Mágica!

A película já levou prêmios e vários festivais no Brasil e no exterior.Cláudio foi o diretor de produção do Baile Perfumado e neste seu novo filme, depois de muitos curtas, mostra a que veio. Exibe a sordidez com requintes pós-nelsonrodrigueanos em imagens, até certo ponto, clean e no formato Cinemascope, que é o padrão internacional. Este longa desbancou Desmundo (Brasil, 2003) de Alain Fresnot, que ambientado no nosso país, então colônia portuguesa, de 1570 e falado em português arcaico, com legendas, conta a saga das mulheres que foram trazidas para servir aos colonos em sexo e reprodução. No festival de cinema de Brasília, por exemplo, este último levou somente prêmios secundários enquanto Amarelo Manga levava quase tudo.

“O pudor é a forma mais inteligente de perversão”, diz o diretor numa participação hitchcokiana no próprio filme, no ouvido da tal crente que a seguir numa cena despudorada chega a enfiar o cabo de uma escova de cabelo no ânus de um parceiro que no momento geme de prazer com isso.

O filme é sádico, seu humor é ácido, cruel ao exibir a miséria recifense. Angustiante. Recife é chupada com vampirismo ímpar.
Hilton Lacerda captou com precisão a fala das ruas do recife. O diretor pernambucano foi convidado a exibir seu filme para o presidente no Palácio do Planalto. Lula e a primeira dama elogiaram e disseram que o filme “não era pesado”.




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